Lula chama de “privatizaria” venda de ações da Eletrobras

A indignação e a luta tomaram o lugar da alegria no aniversário de 60 anos da Eletrobrás no sábado (11/06). Caso se concretize, a oferta de ações marcada para a segunda-feira (13/06), na qual será dissolvida a participação majoritária da União na estatal, caracterizará um dos maiores crimes contra a soberania nacional da história e fará o Brasil retroceder aos tempos em que os constantes apagões estavam na boca do povo.

“Rio de Janeiro / Cidade que nos seduz / De dia falta água / De noite falta luz” (Vagalume, por Violeta Cavalcanti). “Acende a vela, Iaiá / Acende a vela / Que a Light cortou a luz / No escuro eu não vejo aquela / Carinha que me seduz” (Acende a Vela, por Emilinha Borba). No carnaval de 1954, dois dos maiores sucessos da folia narraram dessa forma a precariedade do sistema elétrico brasileiro, na ocasião dominado pelo setor privado.

Na época, a geração e a distribuição de energia eram repartidas entre a estadunidense Amforp e a canadense Light. A produção de eletricidade era pífia e as redes de distribuição eram pequenas e isoladas. As empresas não conseguiam atender à demanda crescente em meio à urbanização e à industrialização aceleradas do país.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), líder nas pesquisas de intenção de voto, tem chamado essa venda de ativos de “privataria” do governo cessane Jair Bolsonaro (PL), enquanto seus porta-vozes avisam que quem comprar ações da empresa energética irá perder dinheiro.

Cada vez mais influente no pensamento econômico de Lula, o ex-senador Roberto Requião, pré-candidato do PT ao governo do Paraná, foi direto ao ponto: “Devemos deixar claro como devolveremos a Eletrobras a Nação brasileira.”

Abaixo, veja as manifestações de Lula sobre o caso Eletrobras:

Economia

– Cerca de 33 milhões de brasileiros estão passando fome. As pessoas são obrigadas a escolher entre comprar comida ou pagar a conta de luz, que não para de subir. E o que faz o governo? Privatiza a Eletrobrás, para aumentar ainda mais a conta de luz.

– Não satisfeito em trazer de volta a fome, o desemprego, a inflação e outros flagelos que havíamos conseguido superar, o atual governo insiste em cometer mais esse crime contra o Brasil e o povo brasileiro: vender a Eletrobrás, a toque de caixa e a preço de banana.

– Tamanha pressão em entregar de mão beijada a maior empresa de geração de energia da América Latina, responsável por quase 40% da energia consumida no Brasil, só tem uma explicação: medo da derrota na eleição de outubro, com o consequente fim da mamata com dinheiro público.

– A Eletrobrás foi construída ao longo de 60 anos, com o suor de gerações de brasileiros. O resultado desse crime de lesa-pátria é a perda da nossa soberania energética. É a entrega de um bem essencial ao desenvolvimento de um país inteiro para empresários que só visam o lucro.

– Perder a Eletrobrás é perder também Furnas, Chesf, Eletronorte e Eletrosul, entre outras empresas estratégicas. É perder também parte da soberania sobre alguns dos nossos principais rios, como o rio Paraná e o rio São Francisco.

– É dizer adeus a programas como o Luz para Todos, responsável por trazer para o século 21 cerca de 16 milhões de brasileiros que antes viviam na escuridão, sem acesso sequer a um copo de água gelada.

– É aumentar ainda mais a conta de luz, que hoje já pesa não apenas no bolso do trabalhador, mas também no orçamento da classe média.

– Mas podem ter certeza: se vencermos a eleição de outubro, como todas as pesquisas anunciam, nós vamos restaurar a soberania do Brasil e do povo brasileiro.

Criação da Eletrobrás, uma decisão de Estado
Um mês após aquele carnaval, o então presidente Getúlio Vargas enviou ao Congresso projeto de lei autorizando o governo a fundar a Eletrobrás, iniciando um processo que só se concluiria em 11 de junho de 1962, quando João Goulart criou as Centrais Elétricas Brasileiras SA. Nascia a maior empresa energética da América Latina, hoje ameaçada pela privataria 2.0 de Jair Bolsonaro e seu ministro-banqueiro Paulo Guedes.

Verdadeiro estadista, Vargas sabia que o governo só conseguiria garantir o suprimento energético necessário à industrialização do país se contasse com uma empresa estatal encarregada de planejar o sistema elétrico nacional, construir usinas e erguer torres com linhas de transmissão. Princípio adotado até hoje pelos quatro maiores produtores de energia do mundo – China, Canadá, Estados Unidos e Brasil (até agora).

Motivado pela recente criação da Petrobrás, aprovada pelos senadores e deputados poucos meses antes, Vargas não imaginava que enfrentaria tamanha resistência. Temendo perder mercado, Light e Amforp se lançaram em campanha feroz para impedir o processo, que se arrastou pelas comissões do Senado e da Câmara e só saiu do papel oito anos e quatro presidentes da República depois.

Alguns meses após enviar o projeto ao Congresso, em agosto de 1954, Getúlio Vargas se suicidou no Palácio das Laranjeiras. Antes de dar um tiro no coração, o presidente deixou seu testemunho em carta-testamento, acusando grupos antinacionalistas pela insana campanha oposicionista que o levou à decisão extrema.

“A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. Quis [eu] criar a liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás. Mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o povo seja independente”, descreveu o presidente que “saiu da vida para entrar na história”.

Da criação à primeira tentativa de privatização
Como Vargas, tampouco os sucessores Café Filho e Juscelino Kubitschek conseguiram aprovar o projeto da Eletrobrás no Congresso. Ela só veio a ocorrer no curto governo de Jânio Quadros, em 1961. A faixa inaugural da empresa seria enfim cortada em 11 de junho de 1962, por João Goulart e o então primeiro-ministro Tancredo Neves.

A nova empresa recebeu a atribuição de promover estudos, projetos de construção e operação de usinas, linhas de transmissão e subestações destinadas ao suprimento de energia elétrica. E acabou incorporando a Amforp, em 1964, e a Light, em 1979.

Inaugurada em 1963, a Usina de Furnas (MG) desempenhava papel fundamental para o desenvolvimento econômico já um ano após a criação, quando entrou em operação a primeira unidade da hidrelétrica. A obra evitou o colapso iminente do fornecimento de energia aos parques industriais da Guanabara, Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.

A Eletrobrás passou a contribuir decisivamente para a expansão da oferta de energia elétrica e o desenvolvimento do país. Entre 1960 e 1980, a capacidade de geração instalada aumentou 600%, passando de 5 GW para 34 GW.

Na década de 1990, as reformas institucionais e as privatizações do governo de Fernando Henrique Cardoso paralisaram os investimentos do sistema. Em maio de 1995, a Eletrobrás e suas quatro subsidiárias de âmbito regional foram incluídas no Programa Nacional de Desestatização (PND).

O PND passou a abranger formalmente todo o sistema, exceto Itaipu (empreendimento binacional) e o segmento de geração termonuclear, por impedimento constitucional. As exceções ainda valem em 2022, nesta segunda tentativa de privatização do sistema.

Em 12 de julho de 1995, o leilão da Escelsa inaugurou a venda das empresas estatais de energia elétrica. As privatizações alteraram a composição da estrutura de propriedade do setor, principalmente na área de distribuição. Mais da metade do mercado nacional de distribuição de energia elétrica passou para o controle de grupos privados, nacionais e estrangeiros, em decorrência da venda de concessionárias atuantes em 11 estados.

As licitações de aproveitamentos hidrelétricos também contribuíram para a ampliação do número de agentes privados no segmento de geração. Mesmo assim, o crescimento da oferta de energia elétrica na segunda metade dos anos 1990 foi assegurado basicamente pelas empresas da Eletrobrás e pelas concessionárias públicas estaduais.

No segundo mandato, FHC enfrentou imensa resistência dos movimentos sindicais e sociais à sua política de reforma e desestatização do setor elétrico. O que passou para a história como privataria tucana fracassou em atrair o volume de investimentos necessário para expandir a oferta, e o blecaute de 11 de março de 1999, que deixou metade do país às escuras por horas, acirrou as críticas à privatização.

A situação piorou em 2001, com o episódio do “apagão”. A maior crise de energia elétrica já ocorrida no Brasil impôs um rigoroso programa de racionamento que estabeleceu metas de redução de 15% a 25% do consumo de energia para consumidores residenciais, industriais e comerciais, empoderando uma inflação na curva ascendente e travando uma atividade econômica em trajetória descendente.

Governos do PT reestruturaram o setor energético
O quadro institucional do setor energético sofreu profundas mudanças nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Em 2004, foi adotado um conjunto de leis e decretos que revitalizaram a presença do Estado no planejamento e regulação do setor e o papel das empresas públicas na expansão do sistema elétrico brasileiro.

Lula cumpria assim seu compromisso com a revisão abrangente da política energética, assumido com a sociedade em julho de 2002, quando apresentou o programa de governo para o setor. Publicado pelo Instituto Cidadania, o documento apontou o fracasso do “modelo de sistema elétrico desregulamentado e entregue às forças do mercado”, defendendo a suspensão das privatizações e uma série de outras medidas.

Uma das autoras do documento, Dilma Rousseff foi nomeada para o Ministério de Minas e Energia (MMA) em janeiro de 2003, assumindo a liderança das reformas. Presidido pela ministra, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) aprovou as diretrizes da proposta do novo modelo institucional em julho de 2003, e em dezembro Lula assinou as Medidas Provisórias nº 144 e 145, contendo as bases legais do novo modelo.

A mudança do marco regulatório setorial tinha três objetivos principais: garantir a segurança do suprimento energético, promover a modicidade tarifária por meio da contratação eficiente e assegurar a universalização do acesso e uso dos serviços de eletricidade no país. Em março de 2004, Lula promulgou as Leis nº 10.847 e 10.848, que modificaram o arcabouço regulatório do setor.

A Eletrobrás e suas empresas controladas Furnas, Chesf, Eletrosul, Eletronorte e CGTEE foram retiradas do PND pelo artigo 31 da Lei nº 10.848, oriundo de emenda apresentada pelo então deputado Fernando Ferro (PT-PE), relator do projeto de lei de conversão da MP nº 144 na Câmara. Foi eliminado assim um dos principais óbices para a retomada dos investimentos do grupo Eletrobrás na expansão do sistema elétrico brasileiro.

Também em 2004 foi criado o Programa Luz para Todos, com o desafio cumprido de universalizar o acesso à energia elétrica para moradores rurais do país. O programa chegou a 3,3 milhões de famílias, beneficiando 15,9 milhões de brasileiros e brasileiras.

Os dados evidenciam o tamanho do investimento público realizado. No total, foram empregados 1,6 milhão de km de cabos elétricos, o que equivaleria a 40 voltas ao redor da Terra. Até 2016, as obras do Luz para Todos geraram 498 mil postos de trabalho.

O Luz para Todos usou mais de 1,2 milhão de transformadores e mais de 8,3 milhões de postes. Na região amazônica, uma nova tecnologia, com postes de resina feitos para flutuar nos rios, permitiu o transporte mais rápido de 68 mil postes, levando luz elétrica a regiões de difícil acesso e para mais de 30 mil famílias indígenas.

Também foram implementadas políticas públicas como o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas (PROINFA), que incentivou a adoção de energia solar e eólica, além de pequenas centrais hidrelétricas e termelétricas a biomassa. O PROINFA garantiu o aumento da oferta de energia elétrica e a redução da emissão de gases de efeito estufa.

Com o objetivo de levar maior segurança ao fornecimento, foi reforçada a infraestrutura de transmissão de energia com construção recorde de linhas ligando as várias regiões do país. Foram construídos 30.038 km linhas de transmissão e outros 13.254 km estavam em andamento em maio de 2016.

Leilões contrataram 1.229 empreendimentos, com capacidade de 92 mil MW. Entraram em operação mais de 57.814 MW, aumentando em 70% a capacidade do sistema em relação a 2002. Em maio de 2016, obras em andamento garantiriam mais 18 mil MW.

Hoje a Eletrobras está presente em todo o Brasil, e possui capacidade instalada para produção de 39.413 MW, ou 38% da energia gerada no Brasil. As linhas de transmissão têm 60 mil km de extensão, ou 56% do total no país. Tudo produto da ação do Estado.

Controle do Estado será retomado “de forma não traumática”
Seis anos após o golpe que afastou a presidenta legítima Dilma Rousseff, o PT traça planos para retomar o controle estatal da Eletrobrás, colocado na mira do setor privado ainda em 2017, pelo usurpador Michel Temer. Em 2021, o desgoverno Bolsonaro conseguiu o aval do Congresso para avançar com o crime de lesa-pátria que pretende perpetrar na próxima semana.

Lula se posicionou mais de uma vez contra a privatização da Eletrobras e fez críticas à venda em ano eleitoral. “Privatizar a Eletrobrás é entregar de bandeja esse inestimável patrimônio duramente construído pelo povo brasileiro”, disse em maio no Twitter.

Em um eventual novo Governo Lula, o questionamento da privatização se dará “de forma não traumática”, qualificou o senador Jean Paul Prates (PT-RN) à agência Reuters. “Temos que usar as mesmas regras de mercado. As que são contestáveis serão (contestadas), usando as regras do jogo. O Estado brasileiro como acionista, majoritário ou não, se mexerá. É um poder e uma prerrogativa do acionista agir”, garantiu.

Presidenta nacional do PT, a deputada federal Gleisi Hoffmann (PR) ressalta que a privatização tocada pelo desgoverno Bolsonaro tornou a operação insegura para os investidores sob aspectos jurídicos, econômicos e políticos. “Da forma como está sendo conduzida, com subavaliação de ativos, atropelos nos processos licitatórios e outros procedimentos, essa privatização configura uma verdadeira negociata”, conclui.

O Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) estima que, privatizada a Eletrobrás, a conta de luz vai subir de 15% a 25%. Estudo do órgão sindical afirma que “a soberania e a segurança energética, a transição energética e a democratização do acesso à energia elétrica ensejam o controle estatal no setor”.

Com a privatização da Eletrobrás, aponta o Dieese, há ainda “enorme risco de perda de controle do Estado sobre a política nuclear brasileira”. Sessenta anos depois de Getúlio Vargas, os mesmos grupos de antes continuam agindo para que o povo não seja independente. Como já ocorreu antes, eles não passarão.