O motorista de aplicativo em Curitiba rodava neste 15 de novembro de 2025 sem saber que era feriado nacional, mas o Blog do Esmael vai explicar por que a Proclamação da República não é a mesma coisa que a Independência do Brasil, embora muita gente misture as duas datas como se fossem um só capítulo da nossa história.
O professor Valdir Cruz, jornalista veterano e sempre atento aos absurdos do cotidiano, publicou nas redes uma foto emblemática [role o texto até o fim]: a escola avisava que teria aula neste 15 de novembro “por motivo de feriado da Independência”. O erro virou ironia pronta. Segundo ele, tratava-se de um colégio cívico-militar criado na gestão do governador Ratinho Júnior, do PSD do Paraná, mais um sintoma de como a confusão histórica atravessa salas de aula e até instituições que deveriam ensinar o básico.
Voltemos ao UBER.
Dentro do carro, o diálogo foi simples e revelador. Perguntei se o movimento estava fraco por ser feriado. O motorista arregalou os olhos, olhou o relógio e devolveu com sinceridade brutal: “Feriado de quê?”. Quando respondi “Proclamação da República”, ele ainda arriscou, meio sem certeza, um “não é Independência, né?”. Essa confusão, que parece pequena, é o retrato de um país que não aprendeu a diferença entre romper com a metrópole e trocar um imperador por generais.
A Independência do Brasil, em 1822, foi o processo que separou politicamente o Reino do Brasil de Portugal. O protagonista foi o príncipe regente Dom Pedro de Alcântara, que virou Dom Pedro I, imperador, depois do famoso episódio do “Independência ou morte” às margens do Ipiranga, em 7 de setembro de 1822. Na prática, o Brasil deixou de ser colônia, mas continuou monarquia, com a mesma família real, o mesmo latifúndio, a mesma escravidão e a mesma elite mandando no grosso da população.
A Independência não foi um grito isolado na beira do riacho, foi um processo longo, entre 1821 e 1825, com guerra de independência na Bahia, no Pará, no Maranhão, na Cisplatina, negociação diplomática com Portugal e intermediação do Reino Unido. O novo Estado pagou uma indenização pesada para a antiga metrópole, contraiu empréstimos em Londres e manteve o modelo agroexportador, com escravizados africanos e descendentes sustentando, a ferro e fogo, a riqueza da corte.
Ou seja, a Independência criou um Brasil politicamente separado de Portugal, mas não fez revolução social. O trono apenas trocou de endereço, de Lisboa para o Rio de Janeiro. O regime continuou monárquico, com imperador, títulos de nobreza, Igreja Católica atrelada ao Estado e voto censitário, restringindo a participação política a uma minoria masculina e rica.
Já a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, é outra história. A essa altura, o país já era independente há mais de seis décadas, governado por Dom Pedro II, imperador respeitado, mas à frente de uma monarquia cansada. O que caiu em 1889 não foi o laço com Portugal, foi a forma de governo. Saiu a monarquia constitucional parlamentarista, entrou a república presidencialista, com forte controle militar no início.
Na manhã de 15 de novembro de 1889, o marechal Deodoro da Fonseca comandou tropas do Exército no Rio de Janeiro, então capital do Império, marchou até o Campo de Santana e derrubou o gabinete chefiado pelo Visconde de Ouro Preto. A princípio, a ideia era apenas trocar o governo, manter Dom Pedro II no trono e reorganizar o ministério. Deodoro nem era republicano convicto. Mas, ao longo do dia, sob pressão de civis e militares republicanos, o movimento deu o passo seguinte: afastou a monarquia e proclamou a República.
A própria historiografia registra sem rodeios que se tratou de um golpe de Estado. A Proclamação da República é chamada de Golpe Republicano ou Golpe de 1889, ato político-militar conduzido pelo alto comando do Exército, sem consulta popular, sem Assembleia Constituinte prévia e com participação limitada de civis. O decreto previu um plebiscito para o povo escolher o regime, mas a consulta nunca foi feita. Em linguagem de Norberto Bobbio, foi um golpe clássico, praticado por órgãos do próprio Estado contra o governo constituído.
Dois dias depois, em 17 de novembro de 1889, Dom Pedro II e a família imperial eram embarcados para o exílio na Europa, encerrando 67 anos de Império do Brasil. No lugar, nasceu a chamada República da Espada, primeira fase da República Velha, dominada por militares e pelas oligarquias regionais. O povo, como resumiu Aristides Lobo, teria assistido “bestializado”, à margem da tomada de poder.
Enquanto a Independência foi marcada por uma guerra aberta contra tropas portuguesas e negociação internacional, a Proclamação da República foi um rearranjo interno, feito pelas elites militares e civis brasileiras. Em 1822, a disputa era entre Brasil e Portugal. Em 1889, a disputa era entre grupos de poder dentro do próprio Brasil, num contexto de crise da monarquia, fim da escravidão e insatisfação de oficiais de baixa patente, ressentidos desde a Guerra do Paraguai.
Outro ponto crucial: a abolição da escravidão em 1888, pela Lei Áurea assinada pela princesa Isabel, minou o último pilar de sustentação da monarquia. Grandes proprietários rurais, que perderam a “propriedade” sem qualquer indenização, tornaram-se republicanos de “última hora”, mais por vingança contra o Império do que por amor à democracia. As elites agrárias, os positivistas que sonhavam com “Ordem e Progresso” e os militares ressentidos convergiram para derrubar o regime.
Do lado popular, o impacto foi bem menor do que a retórica oficial sugere. A República não trouxe, de imediato, direitos sociais, emprego, terra ou cidadania plena. O voto seguia restrito a homens alfabetizados, deixando de fora a imensa maioria analfabeta, mulheres, ex-escravizados, pobres urbanos e pessoas em situação de rua. A velha exclusão social atravessou 1822, 1888 e 1889 praticamente intacta.
Se a Independência é a certidão de nascimento do Brasil como país soberano, a Proclamação da República é a certidão de óbito do Império. O problema é que, na escola, muitos livros didáticos embolam as duas coisas, transformam tudo em uma sequência de “datas cívicas”, com desfiles, bandeiras e hinos, sem explicar o que estava em jogo em cada momento histórico. Aí o motorista de aplicativo olha para o calendário, vê 7 de setembro e 15 de novembro, mas não consegue dizer o que muda na vida real.
A própria narrativa oficial ajudou a maquiar 1889. O Exército celebra a data como se tivesse sido uma transição suave, “ordeira e pacífica”, protagonizada por “civis e militares unidos”. Desfile, banda marcial, discurso sobre “ordem e progresso” e quase nenhuma palavra sobre golpe de Estado, traição às promessas de plebiscito ou exclusão popular. A República nasceu de cima para baixo e, em vez de assumir esse pecado original, tentou se vender como revolução.
O que houve em 1889 não foi revolução. Não houve redistribuição de terra, nem ruptura com o poder econômico, nem inclusão dos de baixo num projeto nacional. Houve, sim, uma mudança de regime, importante, histórica, mas limitada ao topo da pirâmide. O trabalho de romper com o Brasil colonial ficou pela metade. E essa meia revolução abriu caminho para uma sequência de outros golpes ao longo da República.
Depois do Golpe Republicano, vieram o movimento de 1930 que levou Getúlio Vargas ao poder, o Estado Novo de 1937, a ditadura civil-militar de 1964 que durou 21 anos e, já na nova República, golpe contra Dilma Rousseff, a tentativa de golpe de Jair Bolsonaro, condenado pelo Supremo Tribunal Federal por tentar solapar o resultado das eleições e a democracia brasileira. A palavra “golpe” não saiu do noticiário porque a República brasileira foi inaugurada por um golpe e, desde então, convive com essa sombra.
Talvez por isso seja tão fácil confundir tudo. Para uma parte da oligarquia, golpe “do bem” não é golpe, é “revolução”. A velha mídia escolhe com cuidado quando usar ou não o termo. Placa cívica chama 1889 de “proclamação”, 1964 de “revolução”, e a tentativa de ruptura recente de Bolsonaro de “crise institucional”. O resultado é um país que não sabe diferenciar independência de ruptura institucional e que trata o 15 de novembro como se fosse só mais um feriadinho.
O motorista que não sabia do feriado não é o vilão da história. Ele trabalha muitas horas para conseguir pagar as contas, enfrenta trânsito pesado, violência, preço da gasolina, boleto atrasado. Quem falhou com ele foi um sistema educacional que esvazia a história, foi uma narrativa oficial que preferiu esconder o golpe de 1889 atrás do verde-oliva, foi uma elite política que nunca teve interesse em explicar ao povo que a República é uma construção coletiva e não um presente dos quartéis.
Entender a diferença entre Independência e Proclamação da República não é frescura de livro didático. É chave para ler o presente. Separar 1822 de 1889 ajuda a enxergar que liberdade nacional não garante democracia interna, que romper com a metrópole não impede golpes feitos por elites locais, que um regime pode nascer sob a marca do golpe e, mesmo assim, ser defendido, aprimorado e democratizado pelo povo ao longo do tempo.
No fim da corrida, o motorista ouviu um resumo rápido: Independência é a separação de Portugal, em 1822, com Dom Pedro I virando imperador de um Brasil ainda escravocrata. Proclamação da República é o golpe militar de 1889, no qual o marechal Deodoro liderou tropas para derrubar a monarquia e instalar a República, sem perguntar nada à população. Ele soltou um “ah, então são dois feriados diferentes mesmo”. Ele agradeceu a explicação, balançou a cabeça com um riso sem graça e arrancou o carro. Ficou no ar a sensação de que o Brasil segue rodando sem saber muito bem para onde vai.
O que o Blog do Esmael propõe é simples e exigente. Da próxima vez que um motorista, um estudante, um trabalhador perguntar por que 15 de novembro é feriado, que a resposta venha com história inteira, sem maquiagem militar, sem apagar o golpe, sem confundir Independência com República. Democracia se protege também com memória. E memória, no Brasil, é luta política de todos os dias.
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Jornalista e Advogado. Especialista em política nacional e bastidores do poder. Desde 2009 é autor do Blog do Esmael.





