Entenda a “ditadura da toga” no Brasil

O ex-ministro Roberto Amaral diferencia didaticamente os tipos de ditaduras existentes e destacada a “ditadura da toga” em vigor no Brasil. “Com o objetivo de entender melhor o conceito, é necessário desfazer a relação siamesa entre ditadura, militar ou não, e golpe de Estado”, escreve em sua coluna.

“O golpe em curso, planejado e executado por uma articulação que compreende setores da alta burocracia estatal (Polícia Federal, Ministério Público), o monopólio político-ideológico da mídia e o poder econômico (destacadamente o capital financeiro nacional e internacional). Foi operado no Congresso, articulado com o Palácio do Jaburu e o Poder Judiciário”, afirma o ex-ministro.

Leia a íntegra da coluna:

Para uma teoria do golpe

Roberto Amaral*

Para entendermos o conceito de golpe de Estado, convém o apartar do sentido consagrado entre nós de golpe militar, título daquelas intervenções até recentemente corriqueiras na América Latina e que sempre terminavam fechando parlamentos, rasgando constituições e exilando a democracia. Presentemente, a classe dominante vale-se da legislação que ela mesmo produziu, e muda as leis para adequá-las aos objetivos do golpe, assim como o Judiciário, a seu serviço, muda a interpretação das leis e dita sentenças e acórdãos convenientes.

Economia

Ainda para precisar o conceito é necessário desfazer a relação siamesa entre ditadura, militar ou não, e golpe de Estado. Nem a ditadura é o segundo momento do golpe, nem toda ditadura é, por definição, militar. A ciência política registra, dentre outras muitas acepções, a “ditadura parlamentar”. No Brasil, cogita-se usar o termo “ditadura da toga”, por razões conhecidas.

Os conceitos de ditadura, portanto, são muitos e variados e não é conhecida a hipótese de ditadura pura, pois quase sempre nela se associam os poderes econômico e político, partidos, parlamento e Judiciário. Nossa última, é por vezes chamada “ditadura civil-militar”…

Operados na sede do poder e pela coalizão que detém sua hegemonia, os golpes de Estado constituem sempre um ato de força, mas não necessariamente pela violência física. Podem decorrer de rupturas constitucionais ou legais, como podem ser ditados mediante aparente respeito à ordem jurídico-legal, levados a cabo tanto pelo Poder Executivo quanto pelo Parlamento ou pelo Judiciário, isoladamente ou em associação, que é a última experiência brasileira.

O que pode haver de pacífico em relação ao conceito de golpe de Estado é sua definição como ruptura, dentro ou não da legalidade, de cima para baixo, de uma ordem política, como, com largueza de exemplos, ilustra nossa História.

O levante civil-militar que levou Getúlio Vargas ao suicídio foi um golpe militar, definido pela sublevação das Forças Armadas, mas que não infringiu a ordem constitucional, como a série golpe-contragolpe de 1955 e a emenda parlamentarista de 1961, feita para minar os poderes do presidente João Goulart.

Já o golpe de 1964 se fez com todas as características consagradas pelo modelo clássico, a saber, intervenção militar e revogação da ordem constitucional, supressão da democracia representativa e repressão dos adversários.

Segundo a forma de irrupção, o sucesso dos golpes muito depende da surpresa e da rapidez com que são executados e consolidados. Nesta categoria, temos o golpe de 1937. O golpe de 2016, por sua vez, foi costurado por mais de um ano e em céu aberto e sua implantação permanece inconclusa.

O golpe em curso, planejado e executado por uma articulação que compreende setores da alta burocracia estatal (Polícia Federal, Ministério Público), o monopólio político-ideológico da mídia e o poder econômico (destacadamente o capital financeiro nacional e internacional). Foi operado no Congresso, articulado com o Palácio do Jaburu e o Poder Judiciário. A deposição da presidente Dilma Rousseff foi, à ausência de amparo legal para a justificativa, objetivamente um golpe de Estado que se repete quando os novos dirigentes adotam um programa de governo política e economicamente em conflito com o pronunciamento da soberania popular, e a vontade expressa da maioria.

Uma das características do golpe de Estado é sua autonomia em face do movimento social (e neste ponto a reflexão olha para a História brasileira), por uma razão evidente: só pode dar golpe quem dispõe de presença no poder como delegado da classe dominante. Esse golpe ignora o movimento social, mas em face dele não assume postura de indiferença.

Assim, antes de responder a um apelo histórico, o golpe se dá contra o movimento social, e por regra contra o processo histórico, interrompendo-o ou tentando alterar seu curso. Na América Latinam, trata-se de expediente corriqueiro levado a cabo para ‘corrigir’ o pronunciamento eleitoral (Brasil, 1955, tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubitscheck e João Goulart), ou pré-condicioná-lo, hipótese da presente tentativa de inviabilizar a candidatura de Lula nas eleições de 2018.

Por que, então, a classe dominante, que exerce o monopólio do poder, lança mão desse expediente? O golpe, pela sua rapidez em produzir efeitos e capacidade de construir pontes sobre empecilhos políticos ou jurídicos, é a forma mais efetiva e rápida de defesa de seus privilégios. A hegemonia da classe dominante depende da acomodação de interesses do bloco no poder, acomodação que pode compreender conflitos em questões não essenciais, como, por exemplo, a democracia e o processo social.

O poder é uma aglutinação de forças econômicas que se acomodam para usufruí-lo, embora possa haver disputas entre as diversas facções. Cada segmento procura pôr na liça, como prioridade, seus privilégios, que precisam ser mantidos ou ampliados, segundo as circunstâncias.

A questão crucial é que todo Estado é de classes, e a construção do poder e seu controle refletem o nível da luta de classes que depende, ainda hoje, do nível de organização dos trabalhadores. Se às forças trabalhistas não é ensejado o golpe de Estado, abre-se para elas, porém, o largo espaço da irrupção social.

O bloco no poder, sempre monolítico na sustentação dos interesses de classe, muitas vezes sem ter sua hegemonia ameaçada, pode conviver com disputas internas em torno de questões adjetivas. Exemplar é a chamada ‘crise de novembro de 1955’, quando as Forças Armadas, fortemente partidarizadas, se dividiram em face das eleições presidenciais, pondo em rota de colisão setores golpistas (aqueles que dentro do governo vetavam a posse de Juscelino Kubitscheck e João Goulart), e as forças legalistas, que defendiam a posse dos eleitos.

Nesses termos se agrupavam, sem considerar os interesses de classe, visões de sociedade e de País, sem considerar os minados campos de esquerda e direita, embora toda a esquerda brasileira militasse na defesa da legalidade, bandeira que dava sombra a comunistas, petebistas, progressistas de um modo geral, o ministro da Guerra e lideranças conservadoras como Sobral Pinto, advogado e líder católico.

Nossa História registra duas tentativas de golpe por forças minoritárias, as quais, por isso mesmo, foram facilmente esmagadas pelo poder dominante: a intentona integralista de 1938 e a tentativa de tomada de poder pelos comunistas de Prestes, com o levante de 1935. Mas essas intervenções mais se coadunam como um subgrupo de golpe de Estado que a literatura classifica como ‘assalto ao poder’ ou putsch.

O golpe de Estado também pode ser motivado pela necessidade de o bloco no poder, como procurador ou despachante da classe dominante, ampliar seus espaços. Esse modelo é ilustrado pelo golpe varguista de 1937 e pela frustrada tentativa de golpe do ex-presidente Jânio Quadros em busca de mais poder ou poder absoluto (1961), quando, novamente, o bloco no poder se dividiu, gerando a crise que se concluiu na posse de João Goulart e a concordata de que resultou o golpe do parlamentarismo, assegurando a posse do vice após retirar-lhe os poderes conferidos pelo presidencialismo, sob cujo regime se elegera.

O leitmotiv mais frequente dos golpes de Estado, que não afetam o caráter do poder, é a reação da classe dominante a qualquer movimento que lhe pareça ameaça de alteração na composição do poder, como, por exemplo, a emergência ‘dos de baixo’ arguindo o direito de presença na coalizão governante.

Em outras palavras, a gênese da disputa, variando caso a caso sua aparência, jamais comporta pôr em risco os interesses da classe dominante, pois essa permanece unificada na defesa de seus privilégios contra as reivindicações das forças populares. Na verdade, as duas ações, caminhando em sentido contrário uma da outra, fortalecem os interesses instalados, a agressividade da direita devendo contribuir para a reorganização das forças sociais progressistas.

O golpe de 2016 tem sua explicação na recusa, por setores majoritários da classe dominante, da continuidade da coabitação no governo de centro-esquerda inaugurado com Lula em 2003. Tal recusa desfaz, mais uma vez, a ilusão da conciliação de classe, velha ideologia disseminada anacronicamente pelo Partido Comunista desde que elegeu como prioridade de sua estratégia a luta contra o imperialismo, em evidente prejuízo da luta interna que forçosamente radicalizaria a luta de classes.

O golpe iniciado em 2016 é a retomada do poder pleno pela direita (agrária, industrial, financeira), em um momento em que a reedição do pacto lulista se mostrava inviável, como inviável seria a continuidade das reformas democratizantes sem a companhia de um programa de forte redistribuição de renda, vetado pela Casa Grande.

O golpe pode ser visto, igualmente, como uma vacina de duplo efeito, primeiro inviabilizando a continuidade das reformas do governo de centro esquerda, assegurando o caráter duradouro das reformas conservadoras implantadas pelos golpistas a toque de caixa. Tendo de haver eleições, seria preciso tomar aquelas providências necessárias para impedir o retorno, pelo voto, dos segmentos apeados do poder no impeachment. É dessa operação que cuidará o julgamento/espetáculo previsto no dia 24.

*Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia

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