Nunca mais seremos os mesmos depois do coronavírus

O jornalista Ricardo Cappelli, num texto reflexivo, ao comparar a mobilização de governos, afirma que a catástrofe da pandemia do coronavírus parece ter engolido liberais fanáticos, ideólogos da higienização da pobreza.

“Pouco importa se a covid-19 nasceu na China ou nos EUA. Numa favela de Mumbai ou na Rocinha carioca. A pandemia engoliu os muros da ilusão”, diz o articulista.

Ao descrever o drama do vizinho Equador, que recolhe seus mortos nas ruas, observa que as cerimônias de despedidas acontecem de portas fechadas.

“Uma atitude extrema de luta pela sobrevivência absolvida previamente em qualquer julgamento divino.”

Leia a íntegra do artigo de Ricardo Cappelli:

Nunca mais seremos os mesmos

Economia

Ricardo Cappelli*

“Da multidão dos que creram era um o coração e a alma. Ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das coisas que possuía; tudo, porém, lhes era comum.” Atos dos Apóstolos 4, versículo 32.

Os caminhões frigoríficos que percorrem as ruas de nosso vizinho Equador estão pintados de luto. A carne que recolhem nas ruas está encharcada de dor.

A doença não espera pelo socorro. O que fazer com a pessoa amada morta dentro de casa? A decisão dilacera a alma. Atormentados pelo medo de que o vírus contamine o restante da família, nossos irmãos equatorianos colocam os cadáveres de seus entes queridos nas portas de suas residências, ao relento.

A cerimônia de despedida acontece ao fechar da porta. Uma atitude extrema de luta pela sobrevivência absolvida previamente em qualquer julgamento divino.

No mundo rico, o famoso Central Park se cobre de lonas à espera do pior. O tão cantado orgulho nacional foi substituído pela asfixia da ansiedade. A nação dos recordes conquista um feito indesejado. Quem será o próximo?

A brutalidade da ausência de valores humanitários mínimos fez o Papa Francisco protestar. A imagem de moradores de rua alocados em vagas descobertas de um estacionamento em Las Vegas é abjeta, embrulha o estômago. Onde fomos parar?

Pouco importa se a covid-19 nasceu na China ou nos EUA. Numa favela de Mumbai ou na Rocinha carioca. A pandemia engoliu os muros da ilusão. Mostrou que somos todos iguais, passageiros do mesmo avião.

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A catástrofe parece ter engolido liberais fanáticos, ideólogos da higienização da pobreza. A sigla NHS – iniciais do sistema de saúde público britânico -, substituiu a bandeira nacional na terra da “Dama de Ferro” Margareth Thatcher.

Dilacerada pela perda de compatriotas, a Espanha está estatizando hospitais.

O drama desnudou os limites da integração europeia. Uma aliança monetária, fiscal e aduaneira pautada por anacrônicos postulados econômicos. Na hora de salvar vidas, instalou-se o cada um por si no velho continente. Nenhuma coordenação ou solidariedade, nada.

Milhões de desempregados e vulneráveis estão sendo socorridos pelos governos em todo o planeta. Por que não tornar permanente uma renda mínima universal? Há algum sentido em vivermos num mundo de alguns poucos bilionários cercados por milhares de miseráveis?

O sapiens se tornou a espécie dominante pela sua capacidade de acreditar e cooperar em massa em torno de abstrações, idéias e ideais comuns. Em qual ponto abandonamos nossa utopia civilizatória? Por quê?

A dor possui a estranha capacidade de nos tornar mais humanos. A pandemia parou o tempo, desafiou paradigmas e vai gerar muitas reflexões. Tudo indica que nunca mais seremos os mesmos.

Estenda a mão ao próximo. Aprenda a ignorar a ignorância dos que agridem. Seja um elo forte da corrente do bem. Abrace sua família. Não desanime. Não dê ouvidos à insensatez de um presidente tresloucado. Assim como o vírus, ele também vai passar. Fique em casa.

*Ricardo Cappelli é jornalista e secretário de estado do Maranhão, cujo governo representa em Brasília. Foi presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes) na gestão 1997-1999.