José Maurino de Oliveira Martins*
Neste feriado do 20 de novembro, Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, celebramos a memória e a resistência de Zumbi dos Palmares, reafirmando a identidade negra como uma força política e cultural inegável na construção do Brasil. Recentemente, fui confrontado com uma reflexão que tocou o cerne do que significa ser negro no nosso país: o resultado do meu teste de ancestralidade genética.
Após quatro décadas de militância e autoidentificação inabalável como negro, meu teste apresentou uma composição multirracial complexa: 37,48% Ameríndia, 25,44% Europeia, 19,04% Asiática, 13,82% Oceania e apenas 4,22% Africana. O impulso inicial foi o de questionar meu próprio pertencimento. Contudo, a experiência me ensinou que o teste de DNA informa sobre a ancestralidade, mas não define a raça nem a identidade política no contexto brasileiro. A identidade racial no Brasil é determinada por dois fatores cruciais que superam qualquer porcentagem laboratorial.
O primeiro é o fenótipo e o racismo. O Brasil adota a classificação racial baseada na aparência (cor da pele, traços, cabelo). É essa aparência que nos sujeita ao racismo. A vivência do racismo não é uma questão de percentual genético, ela é imposta pelo olhar social. Se a sociedade me percebe como negro, sou atingido pelas estruturas racistas direcionadas à população negra. Um dado eloquente reforça este ponto: no Brasil, a renda média da população branca é consistentemente 70% superior à da população negra, uma desigualdade que não se explica por nenhuma diferença de DNA. A realidade socioeconômica e a violência policial, que vitima a juventude negra de forma desproporcional, são provas inegáveis de que a raça é uma construção política baseada na aparência, e não na genética.
O segundo é a Identidade Política e a Luta. A negritude é, acima de tudo, uma posição política e uma identidade ativamente construída. Minha identidade foi forjada em 40 anos de ativismo, de enfrentamento e de celebração da cultura afro-brasileira. Minha complexa composição genética — o alto percentual Ameríndio (37,48%) e Europeu (25,44%), ao lado do Africano (4,22%) — é apenas um documento científico da violência histórica que forjou o Brasil, comprovando a miscigenação intensa e o apagamento das memórias genealógicas impostas pelo regime escravocrata.
Portanto, neste 20 de novembro, a verdade inegociável é que nossa identidade não reside em porcentagens genéticas, mas na experiência da negritude, na resistência diária e na escolha política de lutar por reparação e igualdade.
A luta antirracista no Brasil é delineada por três marcos com pesos políticos e simbólicos distintos. O 13 de maio, dia da abolição incompleta, encarado como um momento de luto e memória pela ausência de reparação. O 3 de julho, foca na dimensão legal e social (Lei Afonso Arinos), exigindo vigilância ativa e o combate ao racismo como crime e estrutura contínua. Já o 20 de novembro é o epicentro da luta, pois afirma o protagonismo, a resistência e a identidade negra construída, celebrando a autonomia cultural e a consciência política.
A verdadeira postura antirracista exige a interpretação integral dessas datas, rejeitar a superficialidade do 13 de maio, manter a denúncia legal do 3 de julho e, principalmente, centrar-se na afirmação da Consciência Negra do 20 de novembro. Pois é justamente esta centralidade que exige um confronto direto com a realidade e gera desconforto cívico.
O fato é que a celebração do 20 de novembro torna-se constrangedora para muitos brasileiros por expor a profunda fratura entre a lei (antirracismo) e a persistente realidade social do racismo estrutural. Diferente de feriados de celebração afetiva ou de exaltação cívica, o Dia da Consciência Negra exige uma ação ativa e um compromisso que vai além da folga. A data obriga o indivíduo a reconhecer o racismo e a admitir que suas estruturas permanecem ativas na sociedade. Por isso, a postura demandada é a antirracista, não basta o conforto do “não sou racista”; é imperativo trabalhar ativamente para desmantelar as estruturas de desigualdade que persistem.
A resistência do mercado ao feriado de 20 de Novembro, baseada no temor de prejuízos no faturamento, é a antítese do que a data representa. A luta por esse feriado é exatamente contra a visão de que o lucro deve se sobrepor à memória, à justiça e à reparação social.
Como se deve comemorar o feriado de 20 de Novembro? Ele é um marco de memória, luta e compromisso político que impulsiona a transformação social. A celebração cultural e afetiva por meio da feijoada, do samba e do pagode são atos de autoafirmação, alegria e resistência. Celebrar a cultura afro-brasileira é gritar “estamos aqui”, resistindo ao apagamento histórico.
Os Seminários e marchas são atividades essenciais, para fortalecer a ação política e educacional. O dia deve ser usado para debater políticas públicas (cotas, saúde, segurança) e realizar atos que cobrem a efetivação da igualdade e o fim da violência racial.
Como saudar nesse feriado da Consciência Negra? O cumprimento “Feliz Dia da Consciência Negra” nos parece inadequado. A forma mais política de saudar a data é com votos de “Luta e Consciência”, “Viva o Dia da Consciência Negra!” ou “Valeu Zumbi!”.
Devemos direcionar as saudações à População Negra, como um reconhecimento de seu valor, história e resistência, e aos antirracistas, como um chamado à ação, pois a Consciência Negra exige o compromisso de toda a sociedade.
A Consciência Negra não é um dia para “dar presentes” ou ser pautada pelo consumismo, é sim, o momento de oferecer o presente mais essencial à nação, o compromisso diário e inegociável com a igualdade e a luta ativa pelo fim do racismo. Somente com essa postura ética e política, o feriado deixará de ser um constrangimento social e se consolidará como um verdadeiro marco de progresso e compromisso nacional.
*José Maurino é Vice-Presidente da Comissão da Diversidade e Igualdade Racial da Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior/SETI e Militante do Movimento Negro há 40 anos [@jose.maurino25]

Jornalista e Advogado. Especialista em política nacional e bastidores do poder. Desde 2009 é autor do Blog do Esmael.





