O pacto das elites e o fracasso das esquerdas

O jornalista Jorge Gregory, um dos ideólogos do PCdoB, em artigo especial, afirma nesta segunda-feira (27) que as elites aceitaram um pacto com a ala militar enquanto a ala ideológica começa a ser afastada ou neutralizada dentro do governo Jair Bolsonaro (sem partido).

Gregory escreve que as condições do armistício são óbvias: as elites concordam em não dar continuidade à campanha contra o governo e os militares concordam em retomar a agenda econômica Guedes, qual seja, “passar a boiada” neoliberal com privatizações e retirada de mais direitos constitucionais da sociedade brasileira.

“Enganam-se, também, aqueles que julgam que tal calmaria afasta os ímpetos golpistas”, alerta o escriba vermelho.

Jorge Gregory critica a esquerda em geral, as correntes progressistas e democráticas, que, “salvo algumas exceções”, se fragmenta e se perde em questiúnculas secundárias.

“A perspectiva de uma frente ampla, frente ao novo quadro, parece ter saído do radar das elites neste momento, mas a unificação do campo democrático, popular e progressista continuam presentes”, defende.

Leia a íntegra do artigo:

Economia

O pacto das elites e o fracasso das esquerdas

*Jorge Gregory

Em meio à pandemia, mesmo com o desastre das políticas sanitárias e econômicas do governo federal, entramos nesta última semana numa aparente calmaria política. Os ares parecem tão calmos que articulistas de peso em grandes veículos de comunicação chegam a afirmar em seus artigos que “o país agradece”.

Diante do crescente isolamento de Bolsonaro, os acenos dos militares demonstrando disposição a um pacto com as elites brasileiras para salvação do governo não representaram novidade. Chegou-se até mesmo a jogar no ar a possibilidade de constituição de um ministério de notáveis, o que implicaria no afastamento do governo da ala terraplanista. Enquanto as correntes democráticas, progressistas e de esquerda se esmeravam em acentuar suas
divergências sobre o caráter da frente democrática, qual estratégia adotar e quem poderia ou não ser aliado, a inação resultante se constituiu em um facilitador ao acordo das elites com a ala militarista.

A prisão de Queiroz e o avanço de inquéritos judiciais comprometedores relacionados à sua família levaram Bolsonaro ao silêncio e ao esfriamento dos confrontos com os Poderes Judiciário e Legislativo. O acometimento pela Covid19 – vamos dar o crédito de que o Presidente tenha sido de fato se contaminado neste momento – acentuaram o silêncio. O cerco judicial às milícias digitais vai se fechando, reduzindo a capacidade de mobilização dos bolsonaristas fanáticos.

Tais circunstâncias permitiram que os militares, pelo menos momentaneamente, tomassem as rédeas do governo. Bolsonaro parece amordaçado e a ala ideológica começa a ser afastada ou neutralizada dentro do governo. Por sua vez, com o aparente afastamento da ameaça de ruptura da ordem democrática, as elites aceitaram o pacto com a ala militar. As condições, ainda que não tenha sido assinado e sacramentado um armistício, são óbvias. As
elites concordam em não dar continuidade à campanha contra o governo e os militares concordam em retomar a agenda econômica Guedes.

Seria um erro de análise afirmar que este é um quadro estável. A capacidade de Bolsonaro de se superar em suas sandices parece ilimitada, de forma que seu comportamento no retorno às atividades plenas do cargo é absolutamente imprevisível. As ameaças judiciais aos seus filhos e a si próprio e a neutralização dos milicianos digitais tornam consistente a aposta em pelo menos um período de bom comportamento do Capitão e, consequentemente, haja garantia de que os militares continuarão no comando por certo tempo. Ainda que curto, julgam as elites que firmado tal pacto o tempo seja suficiente para “passar a boiada”, aprovando as reformas neoliberais que lhes interessam.

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Enganam-se, também, aqueles que julgam que tal calmaria afasta os ímpetos golpistas.

Eles não só permanecem presentes em razão da imprevisibilidade de Bolsonaro mas também pela massiva participação de militares, ainda que alguns da reserva, no governo. Os militares não apoiaram Bolsonaro por admirá-lo como grande líder. Deram-lhe apoio por considerá-lo um instrumento, não para um projeto de governo, mas para um projeto de poder.

Causa-me perplexidade a afirmação de muitos de que os militares não representam uma ameaça autoritária, assim como o fato de alguns do campo progressista e de esquerda chegarem a afirmar que eles não apoiaram Bolsonaro, mas “assumiram o governo para reduzir danos”.

Isto me faz lembrar a situação de quando se cruza na calçada com um sujeito passeando com um pitbull sem coleira e sem focinheira e ele te fala “não se preocupe, o cão é dócil e bem treinado”. Desconfie e passe distante, pois cão de combate só é confiável com focinheira e preso no canil. Da mesma forma, fardados, em especial os brasileiros,só são confiáveis confinados nos quartéis e cumprindo estritamente suas obrigações militares. Nunca na política. Nem Maia nem Merval Pereira (leiam o artigo Cada um no seu quadrado) parecem subestimar a questão militar, mas muitos do campo progressista e de esquerda o fazem.

Ao tempo em que as elites e os militares firmam seu pacto, ainda que frágil e interesseiro, a esquerda, as correntes progressistas e democráticas, salvo algumas exceções, se fragmentam e se perdem em questiúnculas secundárias. Sem entender minimamente o conceito de “unidade e luta” na formulação de alianças, caminham para o total auto isolamento sob argumentos de que não se faz aliança com golpistas, não há acordo com neoliberais, não tem conversa com quem me traiu na eleição de 2018 e tantas outras baboseiras. Isto quer dizer que pelo fato de terem votado a favor do FUNDEB em aliança até mesmo com bolsonaristas, todos os deputados e senadores de esquerda traíram suas convicções? Por terem feito tal aliança, tais parlamentares aderiram à pauta neoliberal ou à pauta do totalitarismo? Poupem-me!

Alianças se fazem em torno de questões pontuais, ou até mais amplas, mas sempre possuem prazo de validade. O conceito de unidade e luta se faz presente até mesmo na aliança mais singular. Duas pessoas que se detestam, havendo concordância de ambas, podem contrair matrimônio em torno de um interesse imediato, como a obtenção de visto de permanência no caso de um dos cônjuges ser estrangeiro. O casamento vai durar o tempo necessário para se atingir o objetivo. Havendo interesses comuns e sentimentos envolvidos, um matrimônio pode durar uma vida. Mas, mesmo assim, a unidade e luta se farão presentes, pois inevitavelmente os posicionamentos diante das situações nem sempre serão os mesmos e o casamento terá altos e baixos. Assim é a vida e assim também é a política. Firmar uma aliança em defesa da democracia de forma a fazer frente aos ímpetos totalitários dos atuais ocupantes do Executivo não significa aderir ao neoliberalismo, nem renunciar a projetos políticos futuros. Na defesa da democracia haverá unidade, na discussão da pauta econômica haverá luta. Nos processos eleitorais futuros, havendo garantias da manutenção da democracia, cada um seguirá seu rumo.

Simples assim.

Infelizmente, hoje a esquerda, as correntes progressistas e democráticas caminham para as eleições municipais em total desarticulação, cada um procurando cuidar do seu próprio umbigo. Ainda que se saiba que estas eleições constituirão a base para as eleições de 2022, as quais serão decisivas para a sobrevivência de cada legenda tendo em vista a legislação eleitoral restritiva – aprovada inclusive com o apoio de setores da esquerda –, a fragmentação levará a um desastre ainda maior do que foi a eleição de 2018. O pleito se dará ainda sob as condições de pandemia e sob a imposição de medidas sanitárias que impedirão os métodos tradicionais de campanha. Ou seja, serão eleições com enormes restrições, que dificultarão o debate político e favorecerão aqueles que estão no poder. Ao mesmo tempo, elas se darão quase que exclusivamente pelos meios digitais e pelas redes sociais, meios estes que a esquerda e as correntes progressistas não dominam, pois não se prepararam. É um terreno no qual a extrema direita leva uma abissal vantagem. Conseguindo manter algumas prefeituras e as bancadas de vereadores, nessas condições, já seria uma grande vitória, mas a falta de estratégias comuns e unificadas tendem a resultar em uma derrota massacrante.

Enfim, os segmentos políticos que, unidos, poderiam fazer frente ao fascismo, agem como se Bolsonaro pudesse cair de maduro por seus desatinos. Esquecem que o personagem nada mais é que a expressão momentânea de um pensamento de extrema direita que impregna a caserna, os aparatos de segurança, as massas controladas pelas milícias e por pastores oportunistas, parcela do empresariado, em particular os pequenos e médios, categorias de

trabalhadores, como os caminhoneiros, e uma fatia do agronegócio. Na natureza e na política, os frutos caem de maduros, mas a árvore só morre se for cortada pela raiz. Enquanto ela permanecer viva, à medida que alguns frutos caem, outros surgem com novas floradas. Flertar com o fascismo poderá trazer um custo irreparável à nação. A única ferramenta capaz de erradicar a ameaça obscurantista é a ampla unidade em defesa da democracia, o que não implica no abandono da luta nas demais questões. A luta resultante das diferenças se trava em plano secundário, em favor do objetivo maior e de interesse comum. A perspectiva de uma frente ampla, frente ao novo quadro, parece ter saído do radar das elites neste momento, mas a unificação do campo democrático, popular e progressista continuam presentes. Ainda há tempo para a correção de rumos.

*Jorge Gregory é jornalista e professor universitário,trabalhou no Ministério da Educação (MEC).