[AO VIVO]: COMITÊ DE IMPEACHMENT COM ESMAEL MORAIS

O Blog do Esmael lança nesta quinta-feira, 21 de abril de 2020, o “Comitê de Impeachment” para discutir o afastamento do presidente Jair Bolsonaro.

O objetivo é colocar em debate os motivos políticos, econômicos, sociais e jurídicos do processo que se iniciou hoje com a protocolização, na Câmara dos Deputados, do pedido de impeachment formulado por mais de 400 entidades, partidos políticos, intelectuais e juristas.

O documento tem como eixos principais os seguintes pontos:

1. Apoio ostensivo e participação direta do Presidente da República em manifestações de índole antidemocrática e afrontosas à Constituição em que foram defendidas gravíssimas transgressões institucionais, tais como o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal;

2. Tentativa de indicação de autoridades da Polícia Federal que estejam submetidas aos desígnios de natureza privada do ocupante da Presidência da República; e

3. Atuação e pronunciamentos temerários e irresponsáveis” diante da pandemia de covid-19.

Economia

Bolsonaro é o pior presidente desde a Proclamação da República, em 15 de Novembro de 1889.

Portanto, o Blog do Esmael será um importante ponto de encontro virtual e democrático nesses tempos tristes, obscuros, de pandemia e de Bolsonaro.

Assista ao vivo:

LEIA A ÍNTEGRA DO PEDIDO DE IMPEACHMENT PROTOCOLADO NA CÂMARA:

EXCELENTÍSSIMO SENHOR PRESIDENTE DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, DEPUTADO FEDERAL RODRIGO MAIA.

vêm, respeitosamente, perante a Câmara dos Deputados, de acordo com o permissivo constante do art. 14 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950 e conforme previsto no art. 218, caput, do Regimento Interno da Casa (RICD), denunciar o Presidente da República Jair Messias Bolsonaro por crime de responsabilidade, com fundamento no art. 85, caput e incisos II, III, IV e V da Constituição da República e nos termos das tipificações decorrentes da incidência do art. 5º, inciso 11; do art. 6º, incisos 1, 2, 5, 6 e 7; do art. 7º, incisos 5, 6, 7, 8 e 9; do art. 8º, incisos 7 e 8; e do art. 9º, incisos 4, 5, 6 e 7, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, a habilitar o recebimento da denúncia, conforme o art. 218, § 2º, do RICD, seu processamento e procedência, seguidos da decretação da acusação pela Câmara dos Deputados e remessa ao Senado Federal, visando à suspensão das funções presidenciais e ao julgamento definitivo do impeachment, com a prolação de decisão condenatória e subsequentes destituição do acusado do cargo de Presidente da República e inabilitação para a função pública, conforme os arts. 52, parágrafo único, e 86 da Constituição da República e os artigos 15 a 38 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950 e de acordo com o objeto adiante delimitado em tópico introdutório específico.

I. OBJETO DA DENÚNCIA.

1. Apoio ostensivo e participação direta do Presidente da República em manifestações de índole antidemocrática e inconstitucional, em que foram defendidas gravíssimas transgressões institucionais, tais como o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, além da reedição do Ato Institucional nº 5, instrumento de exceção emblemático da ditadura militar instaurada em 1964, que inaugurou o período mais sombrio daquele regime, ao desencadear a supressão de liberdades e garantias da cidadania, tais como o habeas corpus, bem como a suspensão do funcionamento das casas parlamentares e do pleno acesso ao Poder Judiciário, a perseguição política, o recrudescimento da censura à imprensa e a cassação de mandatos eleitorais, sendo que tais protestos foram estimulados, acompanhados e reforçados pelo atual mandatário num contexto de desafio aberto à autonomia de estados-membros da Federação, do Distrito Federal e dos municípios em suas respectivas competências e de agressões a profissionais da imprensa no livre exercício de suas atividades, atentando assim contra a Constituição da República. (crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados: art. 6º, incisos 1, 2, 5, 6 e 7 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950; e crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais: art. 7º, incisos 5, 6, 7, 8 e 9 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950).

2. Grave violação praticada pelo Presidente da República ao princípio republicano e ao mandamento constitucional da impessoalidade no exercício da administração pública, mediante a utilização de poderes inerentes ao cargo com o propósito reconhecido de concretizar a espúria obtenção de interesses de natureza pessoal, objetivando o resguardo de integrantes de sua família ante investigações policiais, mediante a determinação anômala de diligências, a exigência de acesso a relatórios de investigações sob sigilo legal e a tentativa de indicação de autoridades da Polícia Federal que estejam submetidas aos desígnios de natureza privada do ocupante da Presidência da República (crimes de responsabilidade contra a probidade na administração: art. 9º, incisos 4, 5, 6 e 7, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950).

3. Atuação e pronunciamentos temerários e irresponsáveis do Presidente da República, de caráter antagônico e contraproducente ao esforço do Ministério da Saúde e de diversas instâncias da Federação vinculadas ao Sistema Único de Saúde (SUS) e aos serviços de prevenção, atenção e atendimento médico-hospitalar à saúde da população, em meio à grave disseminação em território nacional da pandemia global do novo coronavírus (Sars-Cov-2), causadora da doença denominada COVID-19, constituindo postura de caráter substancialmente atentatório ao bem-estar e à proteção da vida e da saúde de brasileiros e brasileiras, em reiterado e perigoso menosprezo à gravidade da emergência de saúde decretada pelo próprio governo federal, no sentido de perpetrar intencional sabotagem das cautelas sociais e medidas governamentais indispensáveis à contenção dos efeitos devastadores de uma catástrofe sanitária em pleno estágio de avanço, sem considerar sequer as evidências traduzidas na escalada do número de diagnósticos e mortes associadas à pandemia no país. (crime contra a existência da União: art. 5º, inciso 11; crime de responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais: art. 7º, incisos 9; e crimes contra a segurança interna do país: art. 8º, incisos 7 e 8; da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950).

II. DESCRIÇÃO DAS CONDUTAS DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA CONSTITUTIVAS DE CRIMES DE RESPONSABILIDADE.

4. A seguir, serão alinhados e desenvolvidos os tópicos descritivos da incorrência do Presidente da República em atos e omissões aptos a configurar seu enquadramento em condutas legalmente típicas do cometimento de crimes de responsabilidade.

II.1. APOIO OSTENSIVO A MANIFESTAÇÕES ANTIDEMOCRÁTICAS E ATENTATÓRIAS À CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA.

5. A Constituição da República, desde o seu preâmbulo, institui um Estado Democrático de Direito, a pressupor a integridade dos poderes e das instituições estatais, além da garantia do exercício dos direitos fundamentais da cidadania. A conservação dos predicados desse modelo de organização constitucional impõe aos representantes dos diversos poderes que integram a estrutura federativa um comportamento minimamente zeloso em relação aos pressupostos de estabilidade do regime democrático. Isso significa que mesmo a atuação de autoridades eleitas, até mesmo do Presidente da República, encontra limites voltados a impedir a exorbitância e os abusos, sobretudo quando estes sinalizam ofensas aos pilares do texto constitucional, em especial no que concerne ao equilíbrio harmônico entre os poderes, preconizado pelo art. 2º e ao respeito em relação às competências dos entes da federação, assegurado pelo art. 18.

6. A narrativa a seguir revela ter havido uma atuação constitucionalmente inescrupulosa por parte do Presidente da República, em contrariedade às elevadas obrigações imprescindíveis ao exercício do cargo. Cumpre recordar que dentre as incumbências presidenciais, assume precedência absoluta, nos termos da Constituição, o “compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição” (art. 78).

7. Uma sucessão de fatos, adiante pormenorizados, oferecem a dimensão do envolvimento direto e ativo do Presidente da República na divulgação e realização de manifestações públicas de rematado desapreço pela integridade dos poderes da República e pelas instituições democráticas. Não bastasse isso, tais eventos converteram-se em reiteradas oportunidades de ameaça escancarada ao livre funcionamento dos poderes Legislativo e Judiciário federais, com agressiva estigmatização pessoal de representantes desses poderes.

8. Tais manifestações adotaram, por conseguinte, um inflamado tom de protesto contra supostas perturbações ou restrições à implementação de medidas e decisões pelo Presidente da República, atribuídas aos demais poderes, cujo regular desempenho passou a ser objeto de repúdio público nessas ocasiões.

9. O mais grave resulta da invocação fervorosa, mesmo na presença do Presidente da República, de palavras de ordem em faixas e coros dos manifestantes pelo fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional, ao lado da subversiva exaltação perversamente saudosista de medidas de exceção impostas no passado por governos autoritários, tais como a intervenção militar e o Ato Institucional nº 5 (AI-5), de modo a sugerir que, em apoio ao Presidente da República, tais anomalias traumáticas de triste memória sejam ressuscitadas, à maneira de uma espécie de autogolpe.

10. É imperativo consignar que a ordem constitucional não contempla brecha alguma que viabilize semelhante modalidade de intervenção militar à margem da obediência fiel à supremacia do poder civil entronizado pela Carta Política de 1988. Tampouco se admite qualquer hipótese de resgate violento de rompimento da prevalência constitucional por meio do instrumento grotesco e ditatorial consubstanciado nos atos institucionais.

11. Consoante será demonstrado adiante, também podendo ser provado pelo depoimento das testemunhas arroladas ao final, tais protestos foram incitados pelo atual mandatário, que deles participou, inclusive, de modo a fomentar um contexto de contestação veemente à autonomia de estados-membros da Federação, do Distrito Federal e dos municípios, em suas respectivas competências concorrentes de preservação da vida e da saúde dos seus respectivos habitantes diante da grave emergência sanitária gerada pela chegada da pandemia do novo coronavírus (Sars-Cov-2) ao Brasil, causando vasto contingente de adoecimentos e mortes.

12. O ambiente de hostilidade aos elementos básicos da democracia e das liberdades, predominante em tais atos, paradoxalmente estimulados pelo próprio Presidente da República, chegou a extremos com o cometimento de atos de agressões físicas e morais aos profissionais de imprensa que compareceram às manifestações com a missão de promover o registro jornalístico de tais eventos.

13. O elemento intencional da conduta do Presidente da República ao convocar, apoiar e participar de tais manifestações, com desenganado endosso pessoal às suas pautas espúrias e ilícitas, não admite dúvida, uma vez que, apesar da ampla e detalhada divulgação do caráter de tais protestos e mesmo após ter havido larga publicidade e veiculação de notícias sobre o conteúdo subversivo e atentatório ao sistema constitucional, além de ameaçador à subsistência dos poderes Legislativo e Judiciário, ainda assim o chefe do Poder Executivo Federal se fez presente seguidas vezes como protagonista desses lúgubres acontecimentos.

14. Tampouco convencem as evasivas desajeitadas do Presidente da República, ao ser confrontado com a sua responsabilidade por tais atos de subversão institucional, no sentido de que deve ser respeitada a liberdade de expressão dos defensores da quebra da normalidade democrática. Sabe-se que, embora constitua garantia fundamental da cidadania, prevista constitucionalmente, até mesmo a liberdade de expressão deve ser contida sob fronteiras demarcadas pela verificação de abusos. Afinal, é inegável que a ordem constitucional democrática não se coaduna com a fruição das prerrogativas da liberdade de expressão que seja destinada de maneira patológica a apregoar o extermínio da própria democracia, o atentado contra a integridade do funcionamento do Parlamento ou da Justiça ou ainda o esvaziamento das competências de entes da Federação.

15. Uma retrospectiva dos fatos vinculados às citadas manifestações têm sua gênese em fevereiro de 2020, a partir de uma declaração ultrajante do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), General Augusto Heleno, dirigida contra os membros do Congresso Nacional[1]. Ato contínuo, em uma concertação visível, as redes sociais ligadas ao grupo político de do Presidente da República iniciaram a difusão de convocações para protestos, anunciando pautas abertamente antidemocráticas. Rapidamente, os chamamentos ganharam a adesão pessoal do chefe do Poder Executivo Federal. As imagens a seguir reproduzidas expressam o teor do convite massivamente difundido para comparecimento a tais atos dedicados à subversão institucional.

1 – Vídeo encaminhado pelo Presidente da República convocando para atos de 15 de março

Print de WhatsApp
Print de vídeo anexada no pedido de impeachment
Foto: Reprodução

16. Os disparos de mensagens mencionados nas matérias publicadas no portal BRPolítico, vinculado ao jornal O Estado de São Paulo, assinadas pela jornalista Vera Magalhães, foram confirmados pelo ex-deputado federal Alberto Fraga, que atestou ser um dos destinatários, conforme notícia publicada tanto no jornal Folha de São Paulo como no O Globo. Lia-se das convocações:

Ele foi chamado a lutar por nós. Ele comprou a briga por nós. Ele desafiou os poderosos por nós. Ele quase morreu por nós. Ele está enfrentando a esquerda corrupta e sanguinária por nós. Ele sofre calúnias e mentiras por fazer o melhor para nós. Ele é a nossa única esperança de dias cada vez melhores. Ele precisa de nosso apoio nas ruas. Dia 15.3 vamos mostrar a força da família brasileira. Vamos mostrar que apoiamos Bolsonaro e rejeitamos os inimigos do Brasil. Somos sim capazes, e temos um presidente trabalhador, incansável, cristão, patriota, capaz, justo, incorruptível. Dia 15/03, todos nas ruas apoiando Bolsonaro.

17. Conforme amplamente noticiado, os atos foram marcados por apoiadores do presidente em defesa do governo, a favor de uma intervenção militar contra os poderes constituídos, contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal.

18. No dia 7/3/2020, em visita a Boa Vista-RR, o Denunciado reforçou a convocação de seus apoiadores para o referido protesto, mencionando explicitamente o seguinte:

Dia 15 agora, um movimento de rua espontâneo. E o político que tem medo de movimento de rua não serve para ser político. Então participem. Não é um movimento contra o Congresso, contra o Judiciário. É um movimento pró-Brasil. É um movimento que quer mostrar para todos nós, presidente, poder Executivo, Legislativo, Judiciário, que quem dá o norte para o Brasil é a população. Quem diz que é um movimento popular contra a democracia está mentindo e tem medo de encarar o povo brasileiro.

19. Sucedeu ainda que, de modo a evidenciar uma promíscua relação entre os órgãos do governo federal e o ativismo político em favor do Presidente da República, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) usou uma conta oficial na rede social Twitter[9] para realizar a divulgação dos atos convocados para o dia 15 de março de 2020. A publicação da Secom destaca uma fala do Denunciado sobre o protesto, na qual o Presidente da República, menciona sem a menor cerimônia que tratar-se-ia de “manifestações populares legítimas”. Na imagem que acompanha a publicação, há uma foto de pessoas protestando usando roupas da cor da bandeira brasileira e uma citação atribuída ao Presidente da República, nesses termos: “As manifestações do dia 15 de março não são contra o Congresso, nem contra o Judiciário. São a favor do Brasil”. Observe-se que a publicação na conta da Secom divulga o ato marcado para 15 de março de 2020 (percebe-se que a postagem está “fixada”, mecanismo para que seja a primeira a ser visualizada ao acessar a página da Secom no Twitter).

20. Embora mencionasse, numa atitude maliciosamente preventiva, não se tratar de movimento de oposição ao Congresso Nacional e ao Poder Judiciário, tal informação contrastava com o fato notório, àquela altura, de que as convocações da manifestação usavam palavras de ordem, hashtags e panfletos que atacavam diretamente as instituições democráticas, com pedidos como o de “intervenção militar”. Veja-se:

21. Em 15 de março de 2020, o próprio Presidente da República tomou parte nos atos a seu favor realizados em Brasília-DF, nos quais proliferavam faixas com dizeres tais como “Fora STF” e “SOS Forças Armadas”, sem que merecessem qualquer censura ou reparo por parte do mandatário.

22. A desatinada conduta presidencial veio a repetir-se em 19 de abril de 2020, quando uma vez mais o Denunciado participou de ato público a favor de seu governo e em favor da quebra da institucionalidade democrática, em frente à sede do Quartel-General do Exército, no Setor Militar Urbano, em Brasília, onde, mesmo diante de faixas com nítido cunho autoritário, agradeceu a presença dos apoiadores e estimulou a sua conduta ao pronunciar que “Todos no Brasil têm que entender que estão submissos à vontade do povo brasileiro. Tenho certeza que todos nós juramos um dia dar a vida pela pátria. Vamos fazer o que for possível para mudar o destino do Brasil”[12]. Eis alguns registros fotográficos do evento, cuja localização agravou sobremaneira o tensionamento institucional, haja vista a inconveniente confusão provocada pelo fato de as atrevidas alusões à pretensão golpista terem sido hospedadas em área militar.

23. O portal de notícias G1 noticiou à época o tom belicoso dos protestos realizados em 19 de abril de 2020, que contaram com a participação do Presidente da República:

Bolsonaro discursa em Brasília para manifestantes que pediam intervenção militar

O presidente Jair Bolsonaro discursou neste domingo (19) durante um ato em Brasília que defendia uma intervenção militar, o que não está previsto na Constituição.

Dezenas de simpatizantes se aglomeraram para ouvir o presidente, contrariando as orientações da de isolamento social da Organização Mundial da Saúde (OMS) para evitar a propagação do coronavírus. Durante o discurso, Bolsonaro tossiu algumas vezes, sem usar a parte interna do cotovelo, conforme orientação das autoridades sanitárias.

Do alto de uma caminhonete, Bolsonaro disse que ele e seus apoiadores não querem negociar nada e voltou a criticar o que chamou de “velha política”.

“Nós não queremos negociar nada. Nós queremos é ação pelo Brasil. O que tinha de velho ficou para trás. Nós temos um novo Brasil pela frente. Todos, sem exceção, têm que ser patriotas e acreditar e fazer a sua parte para que nós possamos colocar o Brasil no lugar de destaque que ele merece. Acabou a época da patifaria. É agora o povo no poder.”

Foi a maior aglomeração provocada por Bolsonaro desde o início da adoção de medidas contra a pandemia no Brasil. Na véspera, ele já havia falado para manifestantes que se concentraram em frente ao Palácio do Planalto.

Antes da fala de Bolsonaro, manifestantes gritavam “Fora, Maia”, “AI-5”, “Fecha o Congresso”, “Fecha o STF”, palavras de ordem ilegais, inconstitucionais e contrárias à democracia. O Ato Institucional número 5 (AI-5) vigorou durante dez anos (de 1968 a 1978), no período da ditadura militar, e foi usado para punir opositores ao regime e cassar parlamentares.

O presidente fez o discurso em frente ao Quartel-General do Exército e na data em que é celebrado o Dia do Exército. Os manifestantes também pediam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF).

Pouco depois, ele postou em uma rede social um trecho do discurso em que diz aos manifestantes:

“Eu estou aqui porque acredito em vocês. Vocês estão aqui porque acreditam no Brasil.”

Alguns apoiadores do presidente carregavam faixas pedindo “intervenção militar já com Bolsonaro”. As faixas tinham o mesmo padrão e pareciam ter sido feitas em série.

Até as 15h50, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF) não haviam se manifestado sobre o discurso.

Bolsonaro afirmou aos simpatizantes que todos os políticos e autoridades “têm que entender que estão submissos à vontade do povo brasileiro”.

“Todos no Brasil têm que entender que estão submissos à vontade do povo brasileiro. Tenho certeza, todos nós juramos um dia dar a vida pela pátria. E vamos fazer o que for possível para mudar o destino do Brasil. Chega da velha política”, afirmou.

Bolsonaro disse aos manifestantes que podem contar com ele “para fazer tudo aquilo que for necessário para que nós possamos manter a nossa democracia e garantir aquilo que há de mais sagrado entre nós, que é a nossa liberdade”.

Mais cedo, os apoiadores de Bolsonaro fizeram uma carreata por Brasília e passaram na Esplanada dos Ministérios, onde também fica o prédio do Congresso.

Governadores e demissão de ministro

Na semana passada, Bolsonaro demitiu o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, depois de embate público envolvendo medidas de restrição social para combate à pandemia do novo coronavírus.

Contrariado pela defesa de Mandetta das medidas de isolamento pregadas pela OMS, nas últimas semanas Bolsonaro fez passeios por Brasília, que geraram aglomeração de pessoas.

O presidente também tem criticado governadores que adotaram medidas de restrição de movimentação de pessoas como forma de conter a disseminação do coronavírus, entre eles o de São Paulo, João Doria, e o do Rio de Janeiro, Wilson Witzel.

Bolsonaro chegou a editar uma medida provisória para concentrar o poder de aplicar medidas de restrição durante a pandemia. Entretanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os estados também têm poder para aplicar regras de isolamento.

Bolsonaro faz críticas à postura dos governadores no combate ao coronavírus

Também na semana passada, Bolsonaro criticou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a quem acusou de estar conduzindo “o Brasil para o caos”.

A crítica de Bolsonaro a Maia se deu em meio à discussão pelo Congresso de medidas econômicas para enfrentamento da crise gerada pela pandemia do novo coronavírus.

Uma dessas medidas, já aprovada pela Câmara mas que ainda aguarda análise do Senado, obriga o governo federal a compensar os estados e municípios por perdas de arrecadação nos próximos meses. Bolsonaro e sua equipe são contra essa medida, defendida por Maia.

24. Já em 29 de abril de 2020, após a divulgação de decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, ao julgar fundamentadamente pedido de liminar no Mandado de Segurança nº 37.097, no sentido de impedir a nomeação do Delegado Alexandre Ramagem para o cargo de Diretor-Geral da Polícia Federal, o Presidente da República passou a atacar publicamente o prolator da decisão, sugerindo a iminência de uma “crise institucional”.

Agora, tirar numa canetada, desautorizar o presidente da República com uma canetada dizendo em impessoalidade. Ontem quase tivemos uma crise institucional. Quase. Faltou pouco. Eu apelo a todos que respeitem a Constituição. Eu não engoli ainda essa decisão do senhor Alexandre de Moraes. Não engoli. Não é essa a forma de tratar um chefe do Executivo.

25. Posteriormente, em 3 de maio de 2020, o Denunciado voltou a participar de uma manifestação pública com nítidos propósitos antidemocráticos e de afronta à ordem constitucional, nela proferindo um canhestro discurso, no qual ameaçou e constrangeu publicamente o Supremo Tribunal Federal.

Temos as Forças Armadas ao lado do povo, pela lei, pela ordem, pela democracia, pela liberdade. (…) Chega de interferência. Não vamos admitir mais interferência. Acabou a paciência. Vamos levar esse Brasil para frente (…) Peço a Deus que não tenhamos problemas nessa semana. Porque chegamos no limite, não tem mais conversa.

26. Naquela oportunidade, os ataques e ameaças não se restringiram apenas aos integrantes dos Poderes Legislativo e Judiciário federais. O Presidente da República e seus fanáticos apoiadores não hesitaram também em admoestar de maneira rude e irresponsável os governadores e prefeitos que contrariassem as convicções anticientíficas esposadas pelo mandatário em desfavor das precauções de distanciamento social recomendáveis durante a pandemia do novo coronavírus.

27. Em 24 de março de 2020, durante pronunciamento em cadeia nacional de rádio e televisão, o Presidente da República já insuflara a população contra governadores e prefeitos[16]. Uma semana depois, em 1º de abril de 2020, poucas horas após falar em um pacto com Estados e Municípios para melhor gerenciar a crise decorrente da pandemia do novo coronavírus, o Denunciado dera entrevistas em que voltou a desferir ofensas aos gestores locais.

Mais recentemente, em 14 de maio de 2020, durante reunião com grupo de empresários, o ora Denunciado dirigiu ofensas ao governador de São Paulo e pediu ao público presente para “chamar o governador e jogar pesado, (…) porque a questão é séria, é guerra”.

28. As agressões promovidas pelo Presidente, porém, não se restringem aos integrantes dos demais Poderes, governadores e prefeitos. Desde o início do mandato presidencial, o Denunciado tem se dedicado a realizar ataques praticamente diários à imprensa.

29. Em levantamento publicado pela Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), até 30 de abril de 2020, o Presidente já havia proferido 179 (cento e setenta e nove) agressões a jornalistas, o que equivale a 1,48 ataques por dia. As ocorrências se intensificam sempre que os meios de comunicação noticiam fatos contrários aos interesses pessoais do Presidente da República.

30. A título ilustrativo, são elencados alguns dos impropérios lançados pelo Presidente em 2020:

· Em 18 de fevereiro de 2020, no Palácio da Alvorada, o Presidente comentou matéria jornalística de profissional da Folha de S. Paulo a respeito de disparos em massa por Whatsapp, e ofendeu a repórter com palavras de cunho sexual: “Ela queria dar o furo (…) a qualquer preço contra mim”.

· Em 4 de março de 2020, o Denunciado colocou um humorista para distribuir bananas a jornalistas em frente ao Palácio da Alvorada[21]. Algumas semanas antes, o próprio Presidente fizera gesto de banana para profissionais da imprensa que o aguardavam na saída do palácio presidencial.

· Em 30 de abril de 2020, o Presidente dirigiu-se à imprensa como “lixo” e ameaçou não renovar as concessões de redes de televisão logo após manifestar contrariedade com matérias jornalísticas que entendia que lhes eram desfavoráveis.

· Em 5 maio de 2020, indagado sobre investigações em curso a respeito da troca do Superintendente da Polícia Federal no Rio de Janeiro, gritou aos repórteres presentes: “Cala a boca, não perguntei nada!”.

31. Tais acusações, além das referências laudatórias ao regime ditatorial instalado entre 1964 e 1985, levaram a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados a emitir, em 19 de maio de 2020, comunicação oficial à Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michele Bachelet, denunciando atos de ruptura democrática no país e requerendo a adoção de medidas para coibir o comportamento autoritário do ora Denunciado.

32. O comportamento pessoal do Presidente da República, diga-se, tem estimulado episódios de agressões promovidas pelos grupos por ele insuflados, inclusive mediante insultos verbais proferidos por apoiadores na presença do próprio Presidente.

33. Em 20 de abril de 2020, jornalistas e fotógrafo foram agredidos em manifestações a favor do Presidente em Brasília e em Porto Alegre. O mesmo ocorreu em 3 de maio de 2020, Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, na Capital Federal, quando um repórter de O Estado de São Paulo sofreu chutes, socos, empurrões e rasteiras durante evento com a presença do Presidente.

34. Não por outra razão, pelo segundo ano seguido a organização Repórteres Sem Fronteiras rebaixou o país no ranking da liberdade de imprensa. O país se encontra atualmente na 107ª posição, caindo cinco posições desde 2018. Segundo a organização, foi decisivo para a queda o “clima de ódio e desconfiança alimentado por Bolsonaro”.

35. Os fatos narrados anteriormente demonstram a evidente incompatibilidade entre as condutas adotadas pelo atual ocupante do cargo de Presidente da República e a dignidade, o decoro e a honradez esperadas de uma autoridade dessa envergadura. Daí a pertinência do enquadramento normativo dos episódios já narrados, com o objetivo de demonstrar o efetivo cometimento de crimes de responsabilidade, aptos a autorizarem a marcha do processo de impeachment presidencial.

36. Com efeito, tendo em vista os atos praticados o Presidente da República acima relatados permitem a constatação da ocorrência de crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados (art. 6º, incisos 1, 2, 5, 6 e 7 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950) e crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais: art. 7º, incisos 5, 6, 7, 8 e 9 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950) de sua autoria. Convém referir, adicionalmente, que, de acordo com o art. 2º, da Lei nº 1.079/1950, “Os crimes definidos nesta lei, ainda quando simplesmente tentados, são passíveis da pena de perda do cargo”. Tais hipóteses legais típicas se originam da previsão do próprio texto da Constituição da República, que dimensiona nos incisos II e II do art. 85 tais modalidades de atos do Presidente da República como crimes de responsabilidade:

SEÇÃO III

DA RESPONSABILIDADE DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:

I – a existência da União;

II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação;

III – o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;

IV – a segurança interna do País;

V – a probidade na administração;

VI – a lei orçamentária;

VII – o cumprimento das leis e das decisões judiciais.

Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento.

37. Emergem do figurino legal, portanto, em decorrência dos fatos articulados no presente tópico, a incursão do Presidente da República nos dispositivos contidos no art. 6º, incisos 1, 2, 5, 6 e 7; e art. 7º, incisos 5, 6, 7, 8 e 9 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950. Confira-se:

DOS CRIMES CONTRA O LIVRE EXERCÍCIO DOS PODERES CONSTITUCIONAIS

Art. 6º São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados:

1 – tentar dissolver o Congresso Nacional, impedir a reunião ou tentar impedir por qualquer modo o funcionamento de qualquer de suas Câmaras;

2 – usar de violência ou ameaça contra algum representante da Nação para afastá-lo da Câmara a que pertença ou para coagí-lo no modo de exercer o seu mandato bem como conseguir ou tentar conseguir o mesmo objetivo mediante suborno ou outras formas de corrupção;

3 – violar as imunidades asseguradas aos membros do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas dos Estados, da Câmara dos Vereadores do Distrito Federal e das Câmaras Municipais;

4 – permitir que força estrangeira transite pelo território do país ou nele permaneça quando a isso se oponha o Congresso Nacional;

5 – opor-se diretamente e por fatos ao livre exercício do Poder Judiciário, ou obstar, por meios violentos, ao efeito dos seus atos, mandados ou sentenças;

6 – usar de violência ou ameaça, para constranger juiz, ou jurado, a proferir ou deixar de proferir despacho, sentença ou voto, ou a fazer ou deixar de fazer ato do seu ofício;

7 – praticar contra os poderes estaduais ou municipais ato definido como crime neste artigo;

8 – intervir em negócios peculiares aos Estados ou aos Municípios com desobediência às normas constitucionais.

CAPÍTULO III

DOS CRIMES CONTRA O EXERCÍCIO DOS DIREITOS POLÍTICOS, INDIVIDUAIS E SOCIAIS

Art. 7º São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais:

1- impedir por violência, ameaça ou corrupção, o livre exercício do voto;

2 – obstar ao livre exercício das funções dos mesários eleitorais;

3 – violar o escrutínio de seção eleitoral ou inquinar de nulidade o seu resultado pela subtração, desvio ou inutilização do respectivo material;

4 – utilizar o poder federal para impedir a livre execução da lei eleitoral;

5 – servir-se das autoridades sob sua subordinação imediata para praticar abuso do poder, ou tolerar que essas autoridades o pratiquem sem repressão sua;

6 – subverter ou tentar subverter por meios violentos a ordem política e social;

7 – incitar militares à desobediência à lei ou infração à disciplina;

8 – provocar animosidade entre as classes armadas ou contra elas, ou delas contra as instituições civis;

9 – violar patentemente qualquer direito ou garantia individual constante do art. 141 e bem assim os direitos sociais assegurados no artigo 157 da Constituição;

10 – tomar ou autorizar durante o estado de sítio, medidas de repressão que excedam os limites estabelecidos na Constituição.

38. Tais conclusões derivam da patente circunstância demonstrada, na qual o discurso público e a mobilização política desencadeadas pela conduta presidencial põem em risco a própria sobrevivência das instituições democráticas. Em tais hipóteses, a Constituição brasileira prevê o remédio do impeachment, formulado originariamente no direito constitucional norte-americano, cuja essência pode ser bem sintetizada na doutrina de Laurence Tribe e Joshua Martz:

Dito de forma simples, o impeachment é o nosso último recurso para evitar uma catástrofe genuína pelas mãos do presidente. Esse poder é pensado para momentos em que a nação encara perigo claro e o aparato constitucional não oferece outra saída plausível. O impeachment deve ocorrer quando os delitos anteriores do presidente são tão terríveis por si sós, e são um sinal tão perturbador da sua conduta futura, que permitir a continuidade do presidente em sua função impõe um claro perigo de dano grave à ordem constitucional.

39. O pedido de impeachment no caso concreto ora trazido ao exame da Câmara dos Deputados se inscreve dentre aqueles imperativos determinados pela defesa dos valores democráticos incolumidade das instituições do Estado de Direito.

40. Nessa linha, a obra clássica de Paulo Brossard sobre o tema assinala que “A idéia de responsabilidade é inseparável do conceito de democracia. E o impeachment constituiu eficaz instrumento de apuração de responsabilidade e, por conseguinte, de aprimoramento da democracia”.

41. Vale dizer, o procedimento de impedimento do Presidente da República deve importar uma preocupação primordial com a manutenção do Estado Democrático de Direito, como também indicado na reflexão de Rafael Mafei Queiroz:

Crimes de responsabilidade preocupam-se sobretudo com as condutas de governantes: eles nos armam contra presidentes cujo padrão de comportamento sugira risco a instituições básicas do Estado de Direito. A luz amarela do impeachment deve acender quanto topamos com líderes que minam espaços de legítima negociação política, intervém de modo suspeito em órgãos de controle e fiscalização, intimidam a sociedade civil que os critica e agridem sem pudor valores constitucionais inegociáveis, tudo isso para fazer prevalecer, a qualquer custo, seus objetivos políticos e pessoais — sejam eles nobres ou mesquinhos, de esquerda ou de direita, progressistas ou conservadores, pouco importa.

42. Dos extratos anteriormente delineados, pode-se inferir com clareza que o impeachment não foi concebido unicamente para coibir situações já concretizadas de subversão da ordem jurídico-política. Sua missão precípua consiste em estancar tentativas, e impedir movimentos que demonstrem a tendência de iminente ruptura institucional provocada pela conduta do Presidente da República.

43. Da narrativa dos fatos já realizada, por conseguinte, em síntese, verifica-se que o Presidente da República incorreu nas condutas tipificadas no art. 6º, itens 1, 2, 5, 6 e 7 e no art. 7º, itens 5, 6, 7, 8 e 9 da Lei nº 1.079/1950.

44. A tentativa de dissolução do Congresso Nacional (art. 6º, inciso 1) é patente no explícito apoio a manifestações de rua que, conforme demonstrado, têm como pauta uma “intervenção militar” nos Poderes Constituídos, com “fechamento do Congresso Nacional”, que ultrapassa e subverte os limites da alçada constitucional das Forças Armadas. Estas, na forma do art. 142 da Constituição, embora sob a autoridade suprema do Presidente da República, destinam-se exclusivamente “à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”, ou seja, nos marcos da preponderância do poder civil, de a cordo com a Constituição da República.

45. A previsão de crime de responsabilidade decorrente da previsão segundo a qual constitui o tipo respectivo “usar de violência ou ameaça contra algum representante da Nação para afastá-lo da Câmara a que pertença ou para coagí-lo no modo de exercer o seu mandato” (art. 6º, inciso 2) afigura-se resultante da participação ativa do Presidente da República em manifestações de matiz claramente hostil à permanência dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal em suas funções constitucionalmente asseguradas, por meio de palavras de ordem e faixas com os dizeres “Fora Maia” e “Fora Alcolumbre” (referentes aos presidentes da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia e do Senado Federal, Davi Alcolumbre).

46. Outro elemento constitutivo de crime de responsabilidade perceptível à luz da narrativa acima comprovada, consiste na identificação da premissa “opor-se diretamente e por fatos ao livre exercício do Poder Judiciário” (art. 6º, inciso 5), uma vez que o Presidente da República afirmou textualmente e de maneira pública não assimilar uma decisão emanada no exercício regular da competência por ministro do Supremo Tribunal Federal, e que a sua prolação teria gerado a iminência de uma crise institucional.

47. Por outro lado, a tentativa de impor a prevalência dos interesses pessoais do mandatário em decisões judiciais do Supremo Tribunal Federal, inclusive mediante o uso de ameaça, importa incursão na conduta tipificada no art. 6º, inciso 6, da Lei nº 1.079/1950, de acordo com o qual configura crime de responsabilidade “usar de violência ou ameaça, para constranger juiz, ou jurado, a proferir ou deixar de proferir despacho, sentença ou voto, ou a fazer ou deixar de fazer ato do seu ofício”.

48. O que se verifica, no caso dos autos, é uma tentativa constante do Presidente da República de utilizar mobilizações populares com o objetivo marcado de obter resultados que lhe sejam favoráveis na apreciação de processos de seu interesse em curso no Supremo Tribunal Federal, tal qual ocorrido no episódio da nomeação do novo Diretor-Geral da Polícia Federal, que também será abordado, pelas suas peculiaridades, em tópico subsequente.

49. Ainda, os fatos já descritos amoldam-se à fattispecie contida no art. 6º, item, 7, da Lei nº 1.079/1950, na medida em que os constrangimentos públicos, as ameaças e a indicação de que empresários levem a cabo uma “guerra” contra os governadores de Estados e prefeitos municipais também constituem delitos imputáveis ao exercente do cargo de chefe do Poder Executivo Federal.

50. De igual maneira, também incidem no caso concreto prescrições específicas da Lei do Impeachment relacionadas à proteção dos direitos políticos, individuais e sociais. Com efeito, o estímulo à conflagração popular contra as instituições da república, mediante o incentivo à subversão violenta da ordem social, assim como a incitação aos militares à desobediência à lei e a provocação de animosidade entre as classes armadas e as instituições civis enquadram-se nas hipóteses normativas do art. 85, III, da Constituição e no art. 7º, itens 5, 6, 7 e 8 da Lei nº 1.079/1950. Assim, a convocação das Forças Armadas – ou o estímulo à sua utilização – para que os Poderes Constitucionais sejam submetidos aos interesses do Executivo Federal tem o condão de configurar o crime de responsabilidade descrito nos dispositivos referidos.

51. Por fim, os atentados à liberdade de imprensa, promovidos e incentivados pelo Presidente da República, conformam violação explícita ao direito fundamental à liberdade de expressão e de comunicação, constante no art. 5º, IX, da Constituição da República. Observe-se que a própria Constituição reserva todo o Capítulo V do Título VIII para preservar a comunicação social das ingerências e lesões promovidas pelo Poder Público.

52. Assim, o art. 220, caput, aponta que “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta constituição”. Dessa maneira, salvo para evitar monopólios e oligopólios, o que garante a liberdade de expressão de todas as formas de pensamento, o dispositivo tem o condão de resguardar os meios de imprensa da ingerência dos agentes de Estado, prerrogativa continuamente violada pelo ora Denunciado. Este não apenas promove ataques diretos e diários aos meios de comunicação e seus trabalhadores, como também incentiva a prática de atos criminosos como agressões verbais e físicas contra os mesmos profissionais.

53. Veja-se que tais circunstâncias, parágrafo 2º do mesmo artigo veda “toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”. Tal disposição, porém, vem sendo continuamente frustrada pelos sucessivos incentivos a agressões promovidas contra integrantes da imprensa profissional.

54. Com efeito, importa referir ao julgamento da ADPF nº130/DF, pelo Supremo Tribunal Federal, em que aquela Corte consignou que a liberdade de imprensa constitui categoria jurídica proibitiva de qualquer forma de restrição, por guardar íntima relação com a própria substância da democracia consagrada pela Carta de 1988:

(…) 2. REGIME CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE DE IMPRENSA COMO REFORÇO DAS LIBERDADES DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, DE INFORMAÇÃO E DE EXPRESSÃO EM SENTIDO GENÉRICO, DE MODO A ABARCAR OS DIREITOS À PRODUÇÃO INTELECTUAL, ARTÍSTICA, CIENTÍFICA E COMUNICACIONAL. A Constituição reservou à imprensa todo um bloco normativo, com o apropriado nome “Da Comunicação Social” (capítulo V do título VIII). A imprensa como plexo ou conjunto de “atividades” ganha a dimensão de instituição-ideia, de modo a poder influenciar cada pessoa de per se e até mesmo formar o que se convencionou chamar de opinião pública. Pelo que ela, Constituição, destinou à imprensa o direito de controlar e revelar as coisas respeitantes à vida do Estado e da própria sociedade. A imprensa como alternativa à explicação ou versão estatal de tudo que possa repercutir no seio da sociedade e como garantido espaço de irrupção do pensamento crítico em qualquer situação ou contingência. Entendendo-se por pensamento crítico o que, plenamente comprometido com a verdade ou essência das coisas, se dota de potencial emancipatório de mentes e espíritos. O corpo normativo da Constituição brasileira sinonimiza liberdade de informação jornalística e liberdade de imprensa, rechaçante de qualquer censura prévia a um direito que é signo e penhor da mais encarecida dignidade da pessoa humana, assim como do mais evoluído estado de civilização. 3. O CAPÍTULO CONSTITUCIONAL DA COMUNICAÇÃO SOCIAL COMO SEGMENTO PROLONGADOR DE SUPERIORES BENS DE PERSONALIDADE QUE SÃO A MAIS DIRETA EMANAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: A LIVRE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO E O DIREITO À INFORMAÇÃO E À EXPRESSÃO ARTÍSTICA, CIENTÍFICA, INTELECTUAL E COMUNICACIONAL. TRANSPASSE DA NATUREZA JURÍDICA DOS DIREITOS PROLONGADOS AO CAPÍTULO CONSTITUCIONAL SOBRE A COMUNICAÇÃO SOCIAL. O art. 220 da Constituição radicaliza e alarga o regime de plena liberdade de atuação da imprensa, porquanto fala: a) que os mencionados direitos de personalidade (liberdade de pensamento, criação, expressão e informação) estão a salvo de qualquer restrição em seu exercício, seja qual for o suporte físico ou tecnológico de sua veiculação; b) que tal exercício não se sujeita a outras disposições que não sejam as figurantes dela própria, Constituição. A liberdade de informação jornalística é versada pela Constituição Federal como expressão sinônima de liberdade de imprensa. Os direitos que dão conteúdo à liberdade de imprensa são bens de personalidade que se qualificam como sobredireitos. Daí que, no limite, as relações de imprensa e as relações de intimidade, vida privada, imagem e honra são de mútua excludência, no sentido de que as primeiras se antecipam, no tempo, às segundas; ou seja, antes de tudo prevalecem as relações de imprensa como superiores bens jurídicos e natural forma de controle social sobre o poder do Estado, sobrevindo as demais relações como eventual responsabilização ou consequência do pleno gozo das primeiras. A expressão constitucional “observado o disposto nesta Constituição” (parte final do art. 220) traduz a incidência dos dispositivos tutelares de outros bens de personalidade, é certo, mas como consequência ou responsabilização pelo desfrute da “plena liberdade de informação jornalística” (§ 1º do mesmo art. 220 da Constituição Federal). Não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, inclusive a procedente do Poder Judiciário, pena de se resvalar para o espaço inconstitucional da prestidigitação jurídica. Silenciando a Constituição quanto ao regime da internet (rede mundial de computadores), não há como se lhe recusar a qualificação de território virtual livremente veiculador de ideias e opiniões, debates, notícias e tudo o mais que signifique plenitude de comunicação. (…) 6. RELAÇÃO DE MÚTUA CAUSALIDADE ENTRE LIBERDADE DE IMPRENSA E DEMOCRACIA. A plena liberdade de imprensa é um patrimônio imaterial que corresponde ao mais eloquente atestado de evolução político-cultural de todo um povo. Pelo seu reconhecido condão de vitalizar por muitos modos a Constituição, tirando-a mais vezes do papel, a Imprensa passa a manter com a democracia a mais entranhada relação de mútua dependência ou retroalimentação. Assim visualizada como verdadeira irmã siamesa da democracia, a imprensa passa a desfrutar de uma liberdade de atuação ainda maior que a liberdade de pensamento, de informação e de expressão dos indivíduos em si mesmos considerados. O § 5º do art. 220 apresenta-se como norma constitucional de concretização de um pluralismo finalmente compreendido como fundamento das sociedades autenticamente democráticas; isto é, o pluralismo como a virtude democrática da respeitosa convivência dos contrários. A imprensa livre é, ela mesma, plural, devido a que são constitucionalmente proibidas a oligopolização e a monopolização do setor (§ 5º do art. 220 da CF). A proibição do monopólio e do oligopólio como novo e autônomo fator de contenção de abusos do chamado “poder social da imprensa”. 7. RELAÇÃO DE INERÊNCIA ENTRE PENSAMENTO CRÍTICO E IMPRENSA LIVRE. A IMPRENSA COMO INSTÂNCIA NATURAL DE FORMAÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA E COMO ALTERNATIVA À VERSÃO OFICIAL DOS FATOS. O pensamento crítico é parte integrante da informação plena e fidedigna. O possível conteúdo socialmente útil da obra compensa eventuais excessos de estilo e da própria verve do autor. O exercício concreto da liberdade de imprensa assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero ou contundente, especialmente contra as autoridades e os agentes do Estado. A crítica jornalística, pela sua relação de inerência com o interesse público, não é aprioristicamente suscetível de censura, mesmo que legislativa ou judicialmente intentada. O próprio das atividades de imprensa é operar como formadora de opinião pública, espaço natural do pensamento crítico e “real alternativa à versão oficial dos fatos” (Deputado Federal Miro Teixeira).

(ADPF 130, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 30/04/2009, DJe-208 DIVULG 05-11-2009 PUBLIC 06-11-2009 EMENT VOL-02381-01 PP-00001 RTJ VOL-00213-01 PP-00020)

55. Ao tentar frustrar o regime constitucional de liberdades, o Presidente da República comete crime contra o exercício de direito político, individual e social, na forma do art. 85, III, da Constituição e do art. 7º, inciso 9, da Lei nº 1.079/1950. Também atenta contra a honra, o decoro e a dignidade do cargo, ao proferir ofensas de baixo calão contra trabalhadores dos meios de comunicação, infringindo disposições constitucionais que permitem a aplicação ao caso do art. 85, V, da Constituição e ao art. 9º, item 7, da Lei nº 1.079/1950.

56. A conjugação de evidências fáticas e elementos de amparo jurídico, acima criteriosamente descrita, indicam que os atos viciados de apoio pernicioso e participação deletéria do Presidente da República em manifestações de índole antidemocrática e atentatórias às instituições e garantias da Constituição da República configuram, inexoravelmente, graves crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados e contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais, a ensejar o recebimento, processamento e procedência da presente denúncia.

II.2. VIOLAÇÕES AO PRINCÍPIO REPUBLICANO E À IMPESSOALIDADE DA ADMINISTRAÇÃO EM FAVOR DE INTERESSES PESSOAIS E FAMILIARES.

57. Também constitui objeto da presente denúncia o conjunto de episódios envolvendo sucessivas tentativas de interferência do Presidente da República no âmbito de inquéritos da Polícia Federal, mediante a utilização de poderes inerentes ao cargo com o propósito confessado publicamente de concretizar espúria obtenção de interesses de natureza pessoal, objetivando o resguardo de integrantes de sua família ante investigações policiais, mediante a determinação anômala de diligências, a exigência de acesso a relatórios de apurações sob sigilo legal e a tentativa de indicação de autoridades da Polícia Federal que estivessem submetidas aos desígnios de natureza privada do ocupante da Presidência da República.

58. Tais elementos repercutem nitidamente em afronta manifesta ao texto da Constituição da república, uma vez que traduzem desprezo aos paradigmas concernentes ao regime republicano, numa perspectiva nociva de apropriação da estrutura do estado a partir de interesses particulares da autoridade máxima do Poder Executivo.

59. Por outro lado, a apreciação desses excessos praticados pelo Presidente da República conforma uma severa transgressão ao princípio da impessoalidade, imponível no âmbito da administração pública, tendo em vista a carência de escrúpulos da autoridade no que se refere ao imperativo de discernimento pleno da dicotomia entre público e privado.

60. Ademais, cumpre referir à ofensa patente ao princípio da razoabilidade, como instrumento implícito e qualificador de ato de improbidade administrativa, previsto no art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 9.429/1992), cuja aplicação enseja caracterização adicional ao enquadramento do Presidente da República em crime de responsabilidade.

61. O somatório de tais reflexões, lançadas sobre os fatos objetivos adiante pormenorizados em específico, conduz à advertência de Pomeroy, escritor estadunidense que, no dizer de Ruy Barbosa, mais proficientemente ventilou a teoria do impeachment. Para o autor citado, a discricionariedade do exercício do cargo presidencial, conquanto admissível, em tese, para respaldar determinadas decisões, encontra limite nas hipóteses de violação deliberada dos termos expressos na Constituição, sobretudo quando o mandatário se desincumba de suas funções de forma “caprichosa, perversa, leviana ou obcecadamente, impassível ante as circunstâncias desastrosas desse proceder”, cabendo nesses casos o julgamento político inerente ao processo de impeachment.

62. Os fatos relativos ao presente tópico vieram à tona por ocasião do anúncio do pedido de demissão do então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, em entrevista coletiva de imprensa ocorrida no dia 24 de abril de 2020, ocasião em que o demissionário acusou o Presidente da República da prática de crimes comuns e de responsabilidade, ao tempo em que, num exercício de sinceridade pouco habitual a tais circunstâncias, admitiu ter tolerado pressões ilícitas sem levá-las a público, a tempo e modo, e expôs as vísceras dos entendimento incomuns que precederam a sua assunção ao cargo de ministro, deixando uma nuvem de obscuridade em torno de supostas contrapartidas que teriam sido negociadas de parte a parte, entre Presidente da República e ministro de Estado da Justiça e Segurança Pública, enquanto permanecera à frente da pasta.

63. Eis trechos das afirmações do ex-ministro Sérgio Moro, em sua entrevista de despedida do cargo, naquilo que interessa à configuração de crimes de responsabilidade praticados pelo Presidente da República:

[…] Desde 2014, sempre tive uma preocupação constante de uma interferência do Executivo na investigação, e isso poderia ser feito de diversas formas, como na troca de diretor-geral sem justa causa, troca de superintendente. Tivemos no início da Lava Jato o superintendente Rosalvo Ferreira, que convidei pro Ministério. Depois foi sucedido pelo superintendente Valeixo. Houve a substituição mas ela foi pela aposentadoria do doutor Rosalvo e foi garantida a autonomia da Polícia Federal durante as investigações. O governo da época (Dilma Roussef, PT) tinha inúmeros defeitos, crimes de corrupção, mas foi fundamental a manutenção da autonomia da PF para que fosse possível realizar este trabalho. Seja de bom grado ou seja pela pressão da sociedade essa autonomia foi mantida e isso permitiu que os resultados fossem alcançados. Isso até é um ilustrativo da importância de garantir estado de direito, o rule of law, a autonomia das instituições de controle e de investigação. Lembrando até um episódio que num domingo qualquer, lembro que Valeixo recebeu uma ordem de soltura ilegal do ex-presidente Lula, condenado por corrupção e preso, emitida por um juiz incompetente. Foi graças a autonomia de Valeixo que ele comunicou as autoridades e foi possível rever essa ordem de prisão ilegal, antes que ela fosse executada, a demonstrar o empenho dessas autoridades e a importância da autonomia das organizações de controle. […] Inclusive foi-me prometido carta branca para nomear todos os assessores como a PRF e a PF. Na ocasião, foi divulgado equivocadamente que eu teria estabelecido como condição uma nomeação ao STF. Isso nunca aconteceu. […] Tem uma única condição que coloquei, que revelo agora, eu disse que como eu estava abandonando minha carreira de 22 anos da magistratura e contribui 22 para a Previdência e pedi que se algo me acontecesse, que minha família não ficasse desamparada sem uma pensão. Foi a única condição que coloquei para assumir a posição no Ministério. O Presidente concordou com todos os compromissos. Falou que me daria carta branca. […] Em todo esse período tive apoio o presidente em vários desses projetos, outros nem tanto, mas a partir do segundo semestre do ano passado passou a haver uma insistência do presidente da troca do comando da Polícia Federal. Isso inclusive foi declarado publicamente. Houve primeiro o desejo de trocar o superintendente do Rio. Sinceramente não havia nenhum motivo para essa mudança. Mas conversando com o superintendente, ele queria sair do cargo por questões pessoais. Então nesse cenário concordamos eu e o diretor geral em promover essa troca com uma substituição técnica, de um indicado da polícia. É preciso fazer uma referência, eu não indico superintendentes. A única pessoa que indiquei foi o diretor Maurício Valeixo. Não é meu papel fazer a minha indicação de superintendentes. Sempre tenho dado autonomia a minha equipe para que eles façam as melhores escolhas, assim se valoriza a equipe e as escolhas técnicas. Eu tinha notícia quando assumi de que pelo menos havia rumores de que a PRF tinha algumas superintendências por indicações políticas. Escolhi o diretor geral, ele pode testemunhar o que eu disse pra ele. Foi ‘escolha tecnicamente, o que não é aceitável são essas indicações políticas’. Claro que existem indicações positivas, mas quando se começam a preencher esses cargos técnicos principalmente de polícia, com questões político-partidárias, realmente o resultado não é bom para a corporação inclusive. O presidente no entanto também passou a insistir na troca do diretor geral. Eu sempre disse, ‘presidente não tem nenhum problema em trocar o diretor-geral, mas preciso de uma causa’ e uma causa normalmente relacionada a insuficiência de desempenho, um erro grave. No entanto o que eu vi durante esse período e até pelo histórico do diretor que é um trabalho bem feito. Várias operações importantes, combate ao crime organizado e corrupção […]. Não é uma questão do nome. Tem outros bons nomes para assumir o cargo de diretor da PF. Há outros delegados igualmente competentes. O grande problema de realizar essa troca é que haveria uma violação de uma promessa que me foi feita, de que eu teria carta branca. Em segundo lugar não haveria causa para essa substituição e estaria claro que estaria havendo ali uma interferência política na polícia federal, o que gera um abalo da credibilidade não minha, mas minha também, mas do governo e do compromisso maior que temos que ter com a lei. E tem um impacto também na própria efetividade da polícia federal, ia gerar uma desorganização. Não aconteceu durante a Lava Jato, a despeito de todos os problemas de corrupção dos governos anteriores. Houve até um episódio que foi nomeado um diretor no passado, com intuito de interferência política e não deu certo ficou pouco mais de três meses a própria instituição rejeitou essa possibilidade. O problema é que nas conversas com o presidente e isso ele me disse expressamente, que o problema não é só a troca do diretor-geral. Haveria intenção de trocar superintendentes, novamente o do Rio, outros provavelmente viriam em seguida como o de Pernambuco, sem que fosse me apresentado uma razão para realizar esses tipos de substituições que fossem aceitáveis. Dialoguei muito tempo, busquei postergar essa decisão, às vezes até sinalizando que poderia concordar no futuro. Até num primeiro momento pensando que poderia ser feito, mas cada vez mais me veio a sinalização de que seria um grande equívoco realizar essa substituição. Ontem conversei com o presidente houve essa insistência. Falei que seria uma interferência política. Ele disse que seria mesmo. Falei que isso teria um impacto pra todos que seria negativo. mas para evitar uma crise durante uma pandemia, não tenho vocação para carbonário, muito pelo contrário acho que o momento é inapropriado para isso eu sinalizei então vamos substituir o Valeixo por alguém que represente a continuidade dos trabalhos, alguém com perfil absolutamente técnico e que fosse uma sugestão minha também, mas na verdade nem minha, da polícia federal. Eu sinalizei com o nome do atual diretor executivo, Disney Rosseti. Nem tenho uma grande familiaridade, mas é uma pessoa de carreira de confiança. E como falei essas questões não são pessoais, têm que ser decididas tecnicamente. Fiz essa sinalização, mas não obtive resposta. O presidente tem preferência por alguns nomes que seriam da indicação dele, não sei qual vai ser a escolha. Foi ventilado o nome de um delegado que passou mais tempo no congresso do que na ativa. Foi indicado o nome do atual diretor da Abin que é até um bom nome dentro da Polícia Federal. Mas o grande problema é que não são tanto essa questão de quem colocar, mas sim por que trocar e permitir que seja feita a interferência política na PF. O presidente me disse mais de uma vez, expressamente, que queria ter uma pessoa do contato pessoal dele que ele pudesse ligar, colher informações, colher relatórios de inteligência, seja diretor-geral, superintendente e realmente não é o papel da polícia federal prestar esse tipo de informação. As investigações têm que ser preservadas. Imaginem se durante a própria Lava Jato, o ministro, diretor-geral ou a então presidente Dilma ficassem ligando para o superintendente em Curitiba para colher informações sobre as investigações em andamento. A autonomia da PF como um respeito a aplicação a lei seja a quem for isso é um valor fundamental que temos que preservar dentro de um Estado de Direito. O presidente me disse isso expressamente, ele pode ou não confirmar, mas é algo que realmente não entendi apropriado. Então o grande problema não é quem entra mas por que alguém entra. E se esse alguém, a corporação aceitando substituição do atual diretor, com o impacto que isso vai ter na corporação, não consegue dizer não pro Presidente a uma proposta dessa espécie, fico na dúvida se vai conseguir dizer não em relação a outros temas. Há uma possibilidade que Valeixo gostaria de sair, mas isso não é totalmente verdadeiro. O ápice de qualquer delegado da PF é a direção geral. E ele entrou com uma missão. Claro que depois de tantas pressões para que saísse, ele de fato manifestou a mim ‘olha talvez seja melhor eu sair para diminuir essa cisma e nós conseguimos realizar uma substituição adequada’, mas nunca isso voluntariamente, mas decorrente dessa pressão que não é apropriada. O Presidente também me informou que tinha preocupação com inquéritos em curso no STF e que a troca também seria oportuna da Polícia Federal por esse motivo. Também não é uma razão que justifique a substituição e é até algo que gera uma grande preocupação. […]. A exoneração fiquei sabendo pelo DOU. Não assinei esse decreto. Em nenhum momento isso foi trazido ou o diretor geral apresentou um pedido formal de exoneração. Depois me comunicou que ontem a noite recebeu uma ligação dizendo que ia sair a exoneração a pedido, e se ele concordava. Ele disse ‘como é que vou concordar com alguma coisa, vou fazer o que’. O fato é que não existe nenhum pedido que foi feito de maneira formal. Sinceramente fui surpreendido, achei que foi ofensivo a via que depois a Secom informou que houve essa exoneração a pedido mas isso de fato não é verdadeiro. Para mim esse último ato é uma sinalização de que o presidente me quer fora do cargo porque essa precipitação na exoneração não vejo muita justificativa. De todo modo, meu entendimento foi que não tinha como aceitar essa substituição. Há uma questão envolvida da minha biografia como juiz, de respeito à lei, ao estado de direito, à impessoalidade no trato das coisas do governo. Seria um tiro na Lava Jato se houvesse substituição de delegados, superintendentes naquela ocasião. Então eu não me senti confortável. Tenho que preservar minha biografa, mas também o compromisso que assumi inicialmente, de que seríamos firmes no combate à corrupção, ao crime organizado e à criminalidade violenta. E o pressuposto a isso é que nós temos que garantir o respeito à lei e à própria autonomia da Polícia Federal contra interferências políticas. O presidente indica o diretor-geral, ele tem essa competência, mas assumiu um compromisso comigo de que seria uma escolha técnica que eu faria. O trabalho vem sendo realizado, e o diretor-geral poderia ser alterado desde que houvesse uma causa consistente. Não tendo essa causa consistente e percebendo que essa interferência política pode levar a relações impróprias entre o diretor-geral, o superintendente para com o Presidente da República é aí que não posso concordar. De todo modo agradeço ao presidente, fui fiel ao compromisso que tivemos e acho que estou sendo fiel no atual momento. No futuro, vou começar a empacotar minhas coisas e providenciar o encaminhamento da minha carta de demissão. Eu infelizmente não tenho como persistir com o compromisso que assumi sem que eu tenha condições de trabalho, de preservar a autonomia da Polícia Federal para realizar seu trabalhos ou sendo forçado a sinalizar uma concordância com uma interferência política na Polícia Federal cujos resultados são imprevisíveis. Espero que independentemente da minha saída seja feita a escolha – quem sabe até a própria manutenção do diretor sendo que não existe pedido de exoneração, mas não havendo essa possibilidade que seja feita uma escolha técnica sem preferências pessoais que seja indicado alguém que possa realizar um trabalho autônomo e independente também a instituição vai também resistir a qualquer espécie de interferência política e alguém que não concorde em trocar superintendente delegados por motivos não justificados. […].

64. Dos trechos destacados, verifica-se a imputação ao Denunciado, pelo ex-ministro da Justiça, de crimes comuns e de responsabilidade. Segundo o que afirmou o ex-ministro, o Denunciado teria atuado para obstruir e embaraçar investigações e processos judiciais que seriam de interesse direto de seus filhos e deputados aliados, inclusive inquéritos que tramitam perante o Supremo Tribunal Federal.

65. No dia 24/4/2020, o ex-ministro exibiu ao Jornal Nacional, da Rede Globo, troca de mensagens com o Denunciado que denotam a intenção deste último de interferir na Polícia Federal, de modo a proteger deputados federais de sua base de apoio. Extrai-se da reportagem do site G1:

Após o pronunciamento de Bolsonaro, a TV Globo cobrou de Moro provas de que as declarações tinham fundamento. O ex-ministro mostrou, então, a imagem de uma troca de mensagens entre ele e o presidente, ocorrida nesta quinta.

O contato é identificado por ‘presidente novíssimo’, indicando ser o número mais recente de Bolsonaro. A imagem mostra que o presidente enviou a Moro o link de uma reportagem do site ‘O Antagonista’ segundo a qual a PF está ‘na cola’ de dez a 12 deputados bolsonaristas.

O presidente, então, escreveu: ‘Mais um motivo para a troca’, se referindo à mudança na direção da Polícia Federal.

66. No dia 2/5/2020, em depoimento prestado à Polícia Federal em Curitiba-PR, o ex-ministro Sérgio Moro afirmou que o Denunciado lhe teria solicitado que trocasse o comando da Polícia Federal no estado do Rio de Janeiro.

67. No dia 14/5/2020, a Advocacia-Geral da União (AGU) entregou ao Supremo Tribunal Federal (STF) transcrição parcial de vídeo de reunião ministerial ocorrida no dia 22/4/2020. Embora o Denunciado tenha negado, a princípio, que teria mencionado a Polícia Federal na referida reunião, constam, na transcrição, diversas alusões à intenção de interferência no referido órgão, extraídas dos trechos da manifestação da AGU divulgados até o presente momento:

Pô, eu tenho a PF que não me dá informações; eu tenho as inteligências das Forçar Armadas que não têm informações, a ABIN tem os seus problemas, tem algumas informações, só não tem mais porque tá faltando realmente… temos problemas… aparcelamento, etc. A gente não pode viver sem informação. Quem é que nunca ficou atrás da… da… da… porta ouvindo o que o seu filho ou a sua filha tá comentando? Tem que ver pra depois… depois que ela engravida não adiante falar com ela mais. Tem que ver antes. Depois que o moleque encheu os cornos de droga, não adianta mais falar com ele: já era. E informação é assim.

(…)

Então essa é a preocupação que temos que ter: a questão estratégia. E não estamos tendo. E, me desculpe, o serviço de informação nosso — todos — é uma vergonha, uma vergonha, que eu não sou informado, e não dá para trabalhar assim, fica difícil. Por isso, vou interferir. Ponto final. Não é ameaça. Não é extrapolação da minha parte. É uma verdade.

(…)

Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro oficialmente e não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar f* minha família toda de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura. Vai trocar; se não puder trocar, troca o chefe dele; não pode trocar o chefe, troca o ministro. E ponto final. Não estamos aqui para brincadeira.

68. Das afirmações transcritas acima, deduz-se a intenção do Denunciado de:

a) Obter informações da Polícia Federal além daquelas a que legalmente o Presidente da República tem acesso, a teor da Lei nº 9.883/99 (Sistema Brasileiro de Inteligência), como forma de subsidiar a tomada de decisões estratégicas, isto é, interferir nas atividades policiais para atender a interesses particulares;

b) Espionar a atividade da Polícia Federal (“Quem é que nunca ficou atrás da… da… da… porta”);

c) Interferir diretamente nas investigações da Polícia Federal (“Por isso, vou interferir. Ponto final. Não é ameaça. Não é extrapolação da minha parte. É uma verdade”);

d) Interferir na troca de comando da Polícia Federal no estado do Rio de Janeiro (“Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro oficialmente e não consegui. Isso acabou”).

69. Após a divulgação da manifestação da AGU pela imprensa, em 15/5/2020, o Denunciado admitiu, ainda, ter mencionado a Polícia Federal na reunião ocorrida no dia 22/4/2020, embora tenha tentado afirmar que a sigla utilizada (“PF”) diria respeito à segurança familiar – o que é inconcebível, tendo em vista que a segurança do Presidente da República e de seus familiares é de responsabilidade do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), não da Polícia Federal.

70. Essas intenções de uso do aparato policial judiciário como se fosse a Polícia Federal um tipo de polícia particular, polícia política, polícia de governo ou polícia do Presidente, haviam sido confessadas pelo Denunciado em pronunciamento ocorrido no dia 24/4/2020. Na ocasião, o Denunciado, confirmando parte das acusações do ex-Ministro Sérgio Moro, confessa que, em inúmeras ocasiões, procurou interferir e influenciar a condução de investigações da Polícia Federal, como nos casos do atentado que sofrera em Juiz de Fora, ainda na campanha presidencial, e no caso do assassinato da vereadora Marielle Franco.

Falava-se em interferência minha na Polícia Federal. Oras bolas: se eu posso trocar um ministro, por que eu não posso, de acordo com a lei, trocar o diretor da Polícia Federal? Eu não tenho que pedir autorização para ninguém para trocar o diretor ou qualquer um outro que esteja na pirâmide hierárquica do Poder Executivo. Será que é interferir na Polícia Federal quase que exigir, implorar a Sergio Moro, que apure quem mandou matar Jair Bolsonaro? A PF de Sergio Moro mais se preocupou com Marielle do que com seu chefe supremo. Cobrei muito deles isso daí. Não interferi. Eu acho que todas as pessoas de bem no Brasil querem saber. Entendo, me desculpe senhor ex-ministro: entre meu caso e o da Marielle, o meu está muito menos difícil de solucionar. Afinal de contas, o autor foi preso em flagrante de delito, mais pessoas testemunharam, telefones foram apreendidos. Três renomados advogados, em menos de 24 horas, estavam lá para defender o assassino. Isso é interferir na Polícia Federal? Será que pedir à Policia Federal, quase implorar, via ministros, que fosse apurado o caso Marielle, no caso porteiro da minha casa 58, na avenida Lúcio Costa, 3.100? Quase que por acaso descobrimos. Se não pedisse para meu filho ir à portaria e filmar a secretária eletrônica, talvez ficasse a dúvida para todos que eu poderia estar envolvido nisso. Isso foi numa quarta-feira de março de 2018, onde entre a ligação do porteiro para a minha casa e as minhas digitais nos painéis de presença da Câmara tinha um espaço de menos de uma hora. Eu não estava lá. Depois, a perícia da Policia Civil do Rio ainda chega à conclusão que aquela voz não é a voz do porteiro em questão. Será que é interferir na Polícia Federal exigir uma investigação sobre esse porteiro, o que aconteceu com ele? Ele foi subornado? Ele foi ameaçado? Ele sofre das faculdades mentais? O que aconteceu para ele falar com tanta propriedade um fato que existiu há praticamente um ano atrás? É exigir da Polícia Federal muito, via senhor ministro, para que esse porteiro fosse investigado? Com todo o respeito a todas as vidas do Brasil, acredito que a vida do presidente da República tem um significado. Afinal de contas, é um chefe de Estado. Isso é interferir na Policia Federal? Cobrar isso da sua Polícia Federal? Confesso que, ao longo do tempo, como bem vos lhes disse, uma coisa é ter uma imagem, conhecer uma pessoa. A outra é conviver com ela. Nunca pedi para ele para que a PF me blindasse onde quer que fosse. […]

E outra coisa: é desmoralizante para o presidente ouvir isso. Mais ainda externar. Ou não trocar, porque não foi trocado, sugerir a troca de dois superintendentes entre 27. O do Rio, (pela) questão do porteiro, a questão do meu filho 04, Renan, que agora tem 20, 21 anos de idade. Quando, no clamor da questão do porteiro, do caso Adélio, que os dois ex-policiais teriam ido falar comigo, também apareceu que o meu filho 04 teria namorado a filha desse ex-sargento. Eu comecei a correr atrás. Primeiro chamei meu filho (e falei): “abre o jogo”. “Pai, eu saí com metade do condomínio, nem lembro quem é essa menina, se é que eu estive com ela”. Hoje a vida é assim. A intenção de dizer que meu filho namorava a filha do ex-sargento era que nós tínhamos relacionamento familiar. Eu não me lembro dele. Pode ser até que tenha tirado foto com ele — durante pré-campanha, campanha, era comum eu tirar em media 500 fotografias por dia, porque essa era minha imprensa. E daí eu fiz um pedido para a Polícia Federal, quase como por favor: chegue em Mossoró (RN) e interrogue o ex-sargento. Foram lá, a PF fez o seu trabalho, interrogou e está comigo a cópia do interrogatório onde ele diz simplesmente o seguinte: “A minha filha nunca namorou o filho do presidente Jair Bolsonaro porque minha filha sempre morou nos Estados Unidos”. Mas eu é que tenho que correr atrás disso? Ou é o ministro, a Polícia Federal que têm que se interessar? Não é para me blindar porque eu não estou incurso em nenhum crime. […]

71. Os fatos aludidos levaram o Supremo Tribunal Federal a instaurar, por provocação do Procurador-Geral da República, o Inquérito nº 4.831.

72. Dos elementos colhidos a partir do discurso do próprio Denunciado, sobressai a constatação de que as condutas por si assumidas demonstram a ocorrência de crimes de responsabilidade, a teor do artigo 85, III e V, da Constituição, e dos artigos 7º, item 5, 9º, itens 4, 5, 6 e 7, da Lei nº 1.079/50, abaixo transcritos:

Constituição:

Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:

(…)

III – o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;

(…)

V – a probidade na administração;

Lei nº 1.079/50:

Art. 7º São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais:

(…)

5 – servir-se das autoridades sob sua subordinação imediata para praticar abuso do poder, ou tolerar que essas autoridades o pratiquem sem repressão sua;

(…)

Art. 9º São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração:

(…)

4 – expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição;

5 – infringir no provimento dos cargos públicos, as normas legais;

6 – Usar de violência ou ameaça contra funcionário público para coagí-lo a proceder ilegalmente, bem como utilizar-se de suborno ou de qualquer outra forma de corrupção para o mesmo fim;

7 – proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do cargo.

73. Destaca-se, por fim, que é irrelevante que o Denunciado tenha ou não alcançado êxito na intenção de interferência na Polícia Federal, vez que a Lei nº 1.079/50 também alcança os crimes tentados, a teor de seu artigo 2º.

II.3. MENOSPREZO E SABOTAGEM DE CAUTELAS E MEDIDAS DE CONTENÇÃO DOS EFEITOS DA PANDEMIA DO COVID-19.

74. Em uma outra perspectiva, mostra-se necessário analisar a responsabilidade do Presidente da República à luz do enfrentamento do atual contexto de pandemia da doença causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2), causador da doença denominada COVID-19.

75. Os fatos que serão a seguir mencionados, no contexto da profunda crise sanitária decorrente da disseminação do novo coronavírus em território nacional agregam fatores consideráveis ao panorama de violações das obrigações do Presidente da República em relação ao exercício do cargo.

76. Desde a eclosão da emergência de saúde em escala mundial, o Presidente da República assumiu uma postura absolutamente temerária e irresponsável em seus atos e pronunciamentos versando sobre o tema.

77. Com efeito, o Presidente da República adotou comportamento de viés antagônico e contraproducente ao esforço do Ministério da Saúde e de diversas instâncias da Federação vinculadas ao Sistema Único de Saúde (SUS) e aos serviços de prevenção, atenção e atendimento médico-hospitalar à população.

78. Como se poderá conformar pela narrativa a seguir, as atitudes do Presidente da República tiveram caráter substancialmente atentatório ao bem-estar e à proteção da vida e da saúde de brasileiros e brasileiras, em reiterado e perigoso menosprezo à gravidade da emergência de saúde decretada pelo próprio governo federal, no sentido de perpetrar intencional sabotagem das cautelas sociais e medidas governamentais indispensáveis à contenção dos efeitos devastadores de uma catástrofe sanitária em pleno estágio de avanço, sem considerar sequer as evidências traduzidas na escalada do número de diagnósticos e mortes associadas à pandemia no país.

79. Desde 31 de dezembro de 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou os países para o surgimento de uma nova enfermidade descoberta na província de Hubei, na China. Em 30 de janeiro de 2020, a OMS reconheceu a existência de emergência de saúde pública de importância internacional (ESPII)[41]. A partir de então, autoridades de distintas nações têm adotado medidas para conter o avanço da doença, que, no entanto, já atingiu todos os continentes, contaminando um total de cerca de 5 milhões de indivíduos.

80. Ato contínuo, mesmo ainda ser ter casos registrados da doença, o Brasil aprovou a Lei nº 13.979/2020, que estipulou medidas para enfrentamento da referida ESPII.

81. Contudo, desde que registrado o primeiro caso da COVID-19 no Brasil, em 26 de fevereiro de 2020, o Estado Brasileiro, em especial a União, por força de uma atitude errática e irresponsável do Presidente da República, falhou conscientemente em prover a assistência necessária à população, abdicando da sua tarefa precípua de articular, coordenar e harmonizar nacionalmente as ações de natureza preventiva e de atendimento, além das medidas de orientação à sociedade e de fixação de padrões de contenção da devastação humanitária e sanitária causada pela pandemia, acarretando um sério agravamento da difusão da doença, que levou o país a ser, atualmente, o principal foco de disseminação do novo coronavírus.

82. No dia 19/5/2020, o Brasil registrou 1179 mortes decorrentes da Covid-19, número que pode ser ainda maior quando se considera que se trata do país que, proporcionalmente, menos testa sua população, dentre os dez países com mais casos registrados.[43] Já são, ao todo, 17.971 vítimas e 271.628 casos confirmados.[44] Esses números trágicos e assustadores prosseguem em ascensão na presente data, potencializados sob a grave suspeita de subnotificações.

83. O comentário do Denunciado diante da recente evolução de tal cenário foi de que “Quem é de direita toma cloroquina. Quem é de esquerda toma Tubaína”, o que dá a dimensão da ausência de responsabilidade de quem menosprezou a emergência sanitária e continua a sabotar as medidas de contenção da pandemia.

84. Em 11 de março de 2020, a OMS declarou a existência de uma pandemia em escala global. Àquela altura, o Brasil ainda não registrara morte pela doença, mas já poderia se preparar para a contenção dos seus maléficos efeitos, que ainda contaminava pouco mais de uma centena de pessoas em nosso país.

85. No entanto, mesmo ciente da gravidade das questões emergenciais que se avizinhavam, apenas em 18/03/2020 o Presidente da República encaminhou ao Congresso Nacional – através da Mensagem n. 93, de 18 de março de 2020 – pedido para que fosse declarada a ocorrência de calamidade pública a fim de viabilizar a atenuação dos efeitos negativos da pandemia de COVID-19 para saúde e a economia brasileira.

86. Como é possível verificar, a deliberada e injustificada inércia do Poder Executivo Federal fez com que fosse perdido um tempo precioso na corrida para salvar vidas de milhares de brasileiros e diminuir as contaminações e adoecimentos.

87. A despeito de tal morosidade, o Congresso Nacional aprovou, em dois dias, o Decreto Legislativo n. 06, de 20 de março de 2020, que “reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública”.

88. No entanto, apesar da autorização legislativa para gastos excepcionais, que extrapolam os limites orçamentários, o Governo Federal apenas autorizou, até 19 de maio de 2020, o dispêndio de menos de 32% do valor total alocado para o enfrentamento à pandemia.

89. Veja-se que o próprio Ministério da Saúde, em seu Boletim Epidemiológico nº 6, de 3 de abril de 2020, data em que o país ainda contabilizava 9.056 casos e 359 óbitos, alertava para a necessidade de investimentos emergenciais para o enfrentamento da pandemia, com a necessidade de ampliação para realização de 30 a 50 mil testes RT-PCR por dia para que se fizesse frente ao avanço do vírus:

A capacidade laboratorial do Brasil ainda é insuficiente para dar resposta a essa fase da epidemia. Até o momento foram registradas 25.675 hospitalizações por Síndrome Respiratória Aguda Grave no Brasil, sendo apenas 7% (1.769/25.675) confirmadas para COVID-19. A Rede Nacional de Laboratório é semi-automatizada, composta pelos 27 Laboratórios Centrais de Saúde Pública (LACENs), Instituto Evandro Chagas e todas as unidades da Fundação Oswaldo Cruz que juntas, em carga máxima, são capazes de processar aproximadamente 6.700 testes por dia. Para o momento mais crítico da emergência, será necessária uma ampliação para realização de 30 a 50 mil testes de RT-PCR por dia. Para isso, o Ministério da Saúde está estabelecendo parceria público-privada com grandes redes de laboratórios e ampliando a capacidade dos LACENs, Fiocruz e Instituto Evandro Chagas. No entanto, não há escala de produção nos principais fornecedores para suprimento de kits laboratoriais para pronta entrega nos próximos 15 dias.

90. Diante desse cenário, percebe-se que, após um mês e meio da doença instalada no Brasil, e mais de dois meses após a declaração da emergência de saúde pública, o Ministério da Saúde apontava que o país apenas realizava pouco mais de 20% (vinte por cento) dos testes necessários para um acompanhamento mínimo da pandemia, capaz de orientar as políticas públicas no sentido de estratégias focadas em grupos ou localidades específicas.

91. Tal circunstância redundou em uma explosão de subnotificações e na falta de clareza sobre as melhores políticas a serem formuladas pelos agentes governamentais.

92. Convém notar que, até a presente data, a capacidade de realização de testes dn Brasil é significativamente inferior àquela de outros países que passam pelo mesmo problema, o que implica o necessário reconhecimento de que os números oficiais estão substancialmente aquém das reais estatísticas da pandemia. Veja-se o gráfico referente aos testes por milhão de habitantes em 19 de maio de 2020:

93. Os alertas dos riscos da inação do poder público diante da pandemia são há muito noticiados pelas autoridades de saúde pública. Diante da ausência de testes em massa, entidades médicas vêm divulgando a necessidade de rígidos controles de movimentação da população nas cidades, com o propósito de conter a curva de morbidade e, acima de tudo, evitar o colapso iminente do sistema de saúde no país, o que inevitavelmente obrigaria os profissionais de saúde a elegerem cidadãos para serem atendidos, em detrimento de outros, agravando as estatísticas de mortes decorrente da pandemia.

94. Veja-se a nota de uma das mais respeitadas instituições de ensino e pesquisa da medicina no país, a Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, datada ainda do mês de março:

Não há contradição entre proteção da economia e proteção da saúde pública. A recessão econômica decorrente da pandemia será global e já é inevitável. Medidas de proteção social, especialmente o provimento de renda mínima para trabalhadores informais e complemento de renda para populações vulneráveis, a exemplo do que outros países estão fazendo, devem ser adotadas imediatamente. Esta proteção econômica é um dever do Estado que garantirá tanto a subsistência dos beneficiários como a preservação de um nível básico de consumo, protegendo a vida e a economia, inclusive os pequenos comércios. Neste cenário, os cortes de salários, inclusive de servidores públicos, constituiriam dano irreparável à economia, com queda ainda mais brusca de patamares de consumo. Não há que se confundir a economia brasileira com interesses econômicos de determinados grupos.

O isolamento exclusivo de pessoas em maior risco não é uma medida viável, especialmente em um país com as características do Brasil, com elevados índices de doenças crônicas não transmissíveis que constituem comorbidades relevantes diante da incidência do novo coronavírus. É importante ressaltar que a Covid-19 pode ser assintomática, tem largo potencial de propagação e, como bem revelam os dados de outros países, pode acometer igualmente jovens saudáveis que, com a sobrecarga dos serviços de saúde públicos e privados, podem vir a engrossar as estatísticas de óbitos evitáveis. Ademais, a experiência de outros países demonstra que, na falta de isolamento, parte significativa dos profissionais de saúde está sendo infectada por transmissão comunitária, ou seja, em seu convívio social, reduzindo o contingente de trabalhadores disponíveis, em prejuízo da saúde desses profissionais e de toda a sociedade.

95. No mesmo sentido, veja-se a nota da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI):

Quando a COVID-19 chega à fase de franca disseminação comunitária, a maior restrição social, com fechamento do comércio e da indústria não essencial, além de não permitir aglomerações humanas, se impõe. Por isso, ela está sendo tomada em países europeus desenvolvidos e nos Estados Unidos da América.

Médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas e todos os demais profissionais de saúde estão trabalhando arduamente nos hospitais e unidades de saúde em todo o país. A epidemia é dinâmica, assim como devem ser as medidas para minimizar sua disseminação. “Ficar em casa” é a resposta mais adequada para a maioria das cidades brasileiras neste momento, principalmente as mais populosas.

96. A recomendação da Organização Mundial da Saúde, por sua vez, é expressa ao encorajar os países que realizem lockdown a aproveitarem esse tempo para desenvolver ações que previnam a disseminação da doença.

97. Tal recomendação fundamenta-se em estudos científicos dotados de rígidos critérios metodológicos, a exemplo daqueles empreendidos pelo Imperial College de Londres, que desenvolveu um modelo de previsão de cenários de acordo com as posturas adotadas pelos governos de cada país diante da crise do novo coronavírus. No relatório datado de 26 de março de 2020, são feitas projeções específicas para o Brasil (DOC. 19), sintetizadas em matéria jornalística do jornal Folha de S. Paulo:

O principal objetivo do isolamento social é impedir que o número de doentes leve os hospitais ao colapso, provocando mortes em excesso. O Brasil tem 46 mil leitos de UTIs com respiradores, capacidade que só não será superada na hipótese mais radical de intervenção.

NENHUMA INTERVENÇÃO

Cenário em que a vida segue normalmente. Dessa maneira, o coronavírus contagiará 188 milhões de brasileiros, dos quais 6,2 milhões terão que ser hospitalizados e 1,5 milhão precisará ser internado em UTI.

Neste caso, o número de mortes estimado é de 1.152.283.

DISTANCIAMENTO SOCIAL

No caso de adoção de medidas como proibição de eventos, redução na circulação, restrição a encontros, uma estratégia mais branda e operacionalmente mais viável que as duas seguintes, o número de mortes chega a 627 mil brasileiros, nos cálculos do Imperial College.

São infectados 122 milhões de brasileiros, dos quais 3,5 precisarão de hospitalização e 831 mil terão que ocupar uma UTI.

COM DISTANCIAMENTO SOCIAL E ISOLAMENTO DOS IDOSOS

Protegendo os idosos, parcela da população mais suscetível a complicações e mortes provocadas pelo coronavírus, o número de mortes chega a 530 mil, nos cálculos dos cientistas. Nesse cenário eles só devem sair de casa apenas em situação de absoluta necessidade.

São infectados 121 milhões de brasileiros, 3,2 milhões precisam ser hospitalizados e 702 mil ficam em estado crítico, que requer tratamento em UTI.

COM SUPRESSÃO TARDIA

Além de determinar o distanciamento social de toda a população, são feitos testes massivos, os casos positivos são isolados e os que tiveram contato com eles, monitorados. É o que fez a Coreia do Sul. As medidas são aplicadas quando há 1,6 morte por 100 mil habitantes por semana. Nesta semana, a taxa de mortes por 100 mil por semana brasileira foi 0,04.

Essa abordagem mais rigorosa reduz o número de mortes a 206 mil.

São contaminados 49,6 milhões de brasileiros, dos quais 1,2 milhão precisarão ser internados em hospitais, e 460 mil terão necessidade de cuidados intensivos. No pico da pandemia, a necessidade será de 460 mil leitos de hospital e 97 mil leitos de UTI.

98. A despeito do quadro trágico desenhado já em meados do mês de março de 2020, o governo federal adotou posturas erráticas e o Presidente da República, ora Denunciado, tornou-se responsável pela completa ausência de direção clara no combate à pandemia. Converteu-se em autêntico sabotador das políticas públicas responsáveis e prudentes na área de saúde em nosso país, justamente no momento mais delicado que a saúde pública enfrentou em toda a nossa história.

99. Em 9.3.2020, o Presidente da República manifestou-se, pela primeira vez, sobre a chegada do novo coronavírus (Sars-Cov-2) ao país, durante evento realizado na cidade de Miami-Flórida, nos Estados Unidos da América. Na ocasião, apontou que “Os números vêm demonstrando que o Brasil começou a se arrumar em sua economia. Obviamente, os números de hoje têm a ver, a queda drástica da Bolsa de Valores no mundo todo, tem a ver com a queda do petróleo que despencou, se eu não me engano, 30%. Tem a questão do coronavírus também que no meu entender está superdimensionado o poder destruidor desse vírus, então talvez esteja sendo potencializado até por questão econômica”.

100. Em 10.3.2020, novamente em Miami-Flórida, Estados Unidos, o Presidente minimizou a crise causada pelo novo coronavírus e atacou a cobertura midiática dos acontecimentos, afirmando que “Muito do que tem ali é mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propaga”.

101. Em 11.3.2020, data em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a existência de pandemia da COVID-19, o Presidente brasileiro afirmou que “O que eu ouvi até o momento, outras gripes mataram mais do que essa”.

102. Em 15.3.2020, contrariando todas as recomendações oficiais e ainda enquanto aguardava confirmação de exame de diagnóstico da COVID-19, o Presidente participou de manifestações convocadas contra as instituições republicanas, realizadas em 15 de março de 2020, tendo entrado em contato com, pelo menos, 272 pessoas. No mesmo dia, em entrevista ao canal CNN Brasil, afirmou que “Quando você proíbe futebol e outras coisas, você parte para uma histeria. Proibir isso ou aquilo não vai conter a expansão” e acrescentou que “Devemos tomar providências, pode se tornar uma questão bastante grave, a do vírus. Mas a economia tem que funcionar porque não podemos ter uma onda de desemprego”.

103. Em 16.3.2020, em manifestação reveladora, o Presidente da República deu mostras de ter uma preocupação maior com a sua permanência no cargo que ora ocupa do que com a saúde e a integridade física dos brasileiros, ao enunciar que “Se afundar a economia, acaba o meu governo, acaba qualquer governo. É uma luta pelo poder. Estou há 15 meses calado, apanhando, agora vou falar. Está em jogo uma disputa política por parte desses caras”.

104. Em 20.3.2020, a despeito da recomendação da comunidade científica no sentido de ser recomendável o isolamento social, o Presidente denominou de “medidas extremas” o impedimento temporário de realização de deslocamentos em atividades não essenciais, adotado por governadores de unidades da federação já atingidas pelo novo coronavírus.

105. Em 24.3.2020, em pronunciamento nacional de rádio e televisão, o Presidente da República voltou a chamar de histeria a adoção de medidas preventivas contra o contágio pelo novo coronavírus. Sem apresentar qualquer dado com mínimo respaldo técnico, afirmou que Estados e Municípios “devem abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transporte, o fechamento dos comércios e o confinamento em massa” e que “São raros os casos fatais de pessoas sãs com menos de 40 anos”, referindo-se à COVID-19 como uma “gripezinha”.

106. Em 26.3.2020, as redes sociais do governo federal passaram a publicar materiais referentes à campanha publicitária denominada O Brasil não pode parar, que defendia o retorno à rotina normal de atividades no país, enquanto os números de infectados pela epidemia saltavam para a casa dos milhares.

107. Veja-se o teor da campanha:

[print de redes sociais]

108. Paralelamente, teve início a circulação, também em redes sociais, da campanha em vídeo, acessível no link https://www.youtube.com/watch?v=OosQexo9_lk&feature=emb_title, a qual tinha o nítido viés de incentivar a população a retomar suas atividades habituais e desestimular as políticas de distanciamento social recomendáveis pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo próprio Ministério da Saúde brasileiro à época.

109. O Presidente declarou, ainda, que acreditava que o Brasil não chegaria à quantidade de óbitos de países como Estados Unidos e Itália, porque “o brasileiro tem que ser estudado, não pega nada. Vê o cara pulando em esgoto, sai, mergulha e não acontece nada”. Paralelamente, também sem exibir qualquer elemento científico capaz de fundar sua afirmação, começou a sustentar que a utilização da hidroxicloroquina teria absoluta eficácia contra a COVID-19: “Até agora, do pessoal que estou falando, é 100% a efetividade que está sem notando, 100%”.

110. Em 29.3.2020, além de comparecer a uma feira livre na cidade-satélite de Ceilândia, a áreas comerciais em Taguatinga e Sudoeste, no Distrito Federal, Jair Bolsonaro indicou a intenção de publicar decreto para determinar o retorno ao trabalho de todos os cidadãos brasileiros: “Eu estou com vontade, não sei se vou fazer, mas estou com vontade de baixar um decreto amanhã: toda e qualquer profissão legalmente existente, ou aquela voltada para a informalidade, mas que for necessária para o sustento dos seus filhos, para levar o leite para os seus filhos, levar arroz e feijão para a sua casa vai poder trabalhar”.

111. Afirmações do gênero se repetiram ao longo de todo o mês de abril, quando o Presidente passou a se engajar na propaganda do uso da hidroxicloroquina e da cloroquina como medicamentos para o tratamento da enfermidade, a despeito da existência de sólidos estudos científicos apontando a ineficácia e os riscos associados à prescrição indiscriminada de ambas. Determinou, ainda, a produção em escala dos medicamentos pelo Exército Brasileiro, adquirindo os insumos a preço exorbitante, em valor quase seis vezes superior ao pago pelo Ministério da Saúde em contrato firmado no ano de 2019.

112. E também participou de diversos atos públicos sem a devida proteção, descumprindo todas as orientações de seu próprio Ministério da Saúde para prevenção da difusão da COVID-19.

113. Não bastasse isso, o Presidente, em 16 de abril de 2020, demitiu o então Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, por não concordar com as medidas adotadas pelo corpo técnico da pasta durante a condução da crise. Nomeou, então, Nelson Teich, médico oncologista, que também veio a ser dispensado em virtude de divergências com as opiniões do Presidente, menos de um mês depois de assumir o cargo.

114. Notícias divulgadas pela imprensa nacional dão conta de que, em ambos os casos, a dispensa se deu em virtude de discordâncias em torno de três questões: inclusão da cloroquina no protocolo de atenção à saúde de pessoas enfermas; adesão dos ministros às determinações de isolamento social levadas a cabo por estados e municípios; e expansão indiscriminada da listagem de atividades consideradas essenciais por meio de decreto presidencial, com o único propósito de promover a retomada imediata de atividades econômicas, em contrariedade às recomendações das entidades internacionais e nacionais de saúde.

115. O resultado, após menos de três meses da chegada do vírus ao país, é catastrófico. Em 19 de maio de 2019, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais pessoas confirmadas com a doença (embora, como visto, seja um dos que menos testa). Também é o sexto em número de mortes causadas pela COVID-19.

116. Além disso, o país é o único, entre os seis com maior número de casos, em que a curva de contágio ainda é claramente ascendente. Veja-se:

[gráfico]

117. Estudo recente de pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas, por sua vez, associou diretamente os discursos do Presidente da República à acentuação de comportamentos de risco:
https://www.aosfatos.org/noticias/falas-de-bolsonaro-levaram-a-queda-no-isolamento-social-entre-seus-apoiadores-aponta-estudo/

118. Imprescindível, por outro lado, fazer menção à peculiar situação de vulnerabilidade a que vêm sendo expostas as populações tradicionais diante da situação de pandemia. A omissão em prover ações de prevenção e atendimento pode implicar o adoecimento e morte de parte considerável desses grupos.

119. Entre os povos indígenas, estimativas de estudiosos liderados pela demógrafa Marta Azevedo (Unicamp) indicam que mais de 80 mil pessoas encontram-se em situação de vulnerabilidade crítica.

120. Investigação da Agência Pública, a seu turno, aponta que tais populações têm sido abandonadas à própria sorte, sujeitando-se a constantes invasões de seus territórios, sem que haja qualquer ação de fiscalização e controle de acesso:

Precariamente assistidas pelo governo e pressionadas pela crescente onda de invasões em seus territórios, as comunidades indígenas enfrentam quase sozinhas o avanço da pandemia do coronavírus nas aldeias. Até o final de segunda-feira (13), o vírus já havia matado três indígenas — um adolescente Yanomami, de 15 anos, em Roraima, uma idosa Borari, de 87 anos, em Alter do Chão, no Pará, e um homem da etnia Mura, de 55 anos, em Manaus — e contagiado nove pessoas no total. Outros 23 casos estão sendo tratados como suspeitos e 31 foram descartados, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde (MS).

121. De igual modo, entre as populações quilombolas, a situação é alarmante. A ausência de titulação dos territórios tem dificultado o acesso a serviços essenciais, como saneamento básico, oferta de água potável, energia elétrica e redes de telecomunicação. Com isso, torna-se ainda mais difícil a prevenção do adoecimento e o acesso a recursos para que tais grupos possam fazer frente à pandemia.

122. Não resta dúvida, à luz de tais informações, de que a conduta pessoal do Presidente da República na condução da crise da COVID-19 teve o condão de torná-lo incurso no tipo prescrito no art. 5º, item 11, e no art. 7º, item 9, da Lei nº 1.079/1950. De fato, as contraproducentes decisões tomadas e orientações emitidas pelo Presidente da República durante a grave crise sanitária contribuíram diretamente para a ofensa a tratados internacionais dos quais o Brasil é parte, bem como para uma maior dimensão da pandemia ora vivenciada, frustrando a fruição plena de direitos fundamentais por cidadãos brasileiros.

123. Frente à gravidade da situação da pandemia, desde há muito anunciada pelas autoridades de saúde, as opiniões pessoais e os atritos de cunho político deveriam tornar-se irrelevantes. Teria sido necessária uma ação responsável e uma governança compenetrada, à altura do desafio. Os diversos poderes e as diversas esferas da Federação deveriam ter agido de forma conjunta, unificada e conforme o texto constitucional.

124. A Constituição promulgada em 1988 introduziu capítulo específico aos direitos sociais, o que fez de modo a incluir o direito à saúde no título voltado aos direitos e às garantias fundamentais, in verbis:

Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

125. Adiante, a Constituição Federal dedica toda uma Seção a discorrer sobre o direito à saúde, dispondo tratar-se de direito de todos e dever do Estado, a ser garantido mediante políticas sociais e econômicas:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

126. Para tanto, a Constituição brasileira estatui que as ações e os serviços de saúde são de relevância pública, integrando uma rede regionalizada – com direção única em cada esfera de governo – e hierarquizada que, em sua totalidade, constitui um sistema único, in verbis:

Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III – participação da comunidade.

(…)

127. Desse modo, além do reconhecimento dos direitos sociais enquanto espécie dos direitos fundamentais, sobre os quais sequer se admite restrição por meio de emenda constitucional, tem-se que o posicionamento em capítulo próprio denota a sua relevância na nova ordem constitucional, a qual, por pautar-se no compromisso com a cidadania e a dignidade humana, assegura-lhes plena eficácia.

128. Nesse contexto, o direito social fundamental à saúde, ao não se subsumir à mera prestação de serviços, portanto, consubstancia instrumento imprescindível à promoção do bem de todos, sem preconceitos e quaisquer formas de discriminação, e à construção de uma sociedade justa e solidária.

129. Estes são, justamente, os compromissos insculpidos no Título I da Constituição Federal, destinado a instituir os fundamentos do Estado Democrático de Direito e os objetivos da República Federativa do Brasil:

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(…)

II – a cidadania;

III – a dignidade da pessoa humana;

(…)

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

130. No que diz respeito à eficácia dos direitos sociais, o texto constitucional não deixa margem para dúvidas ao dispor que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata (art. 5º, § 1º, da CRFB).

131. Disso decorre, portanto, o dever do Estado – nos diferentes níveis da federação – de pautar a sua atuação em estrita observância à garantia de máxima efetividade quando se tratar de matérias afetas a direitos e garantias fundamentais, notadamente ao direito social à saúde ameaçado por ocasião da pandemia COVID-19, pelo que estas exigem prestações positivas do Estado.

132. Tal garantia de máxima efetividade, contudo, somente pode ser alcançada objetivamente se as ações estatais forem fundadas em critérios técnicos, apurados pelos órgãos com a atribuição constitucional, legal e regulamentar para tal, a abrangerem não apenas aqueles constituídos a partir do direito interno, mas também os que derivam das formulações de direito internacional.

133. Há que se destacar que, consoante se extrai do art. 5º, § 2º da Constituição, “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, sendo inequivocamente incorporados ao ordenamento brasileiro com natureza supralegal.

134. Sobressai, neste contexto, o teor das determinações exaradas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), aplicáveis à pandemia que ora afeta todos os continentes do planeta.

135. Como já referido, em 30 de janeiro de 2020, a OMS conferiu à epidemia do novo coronavírus o status de “emergência de saúde pública de importância internacional”, o que significa, nos termos do Regulamento Sanitário Internacional de 2005, “um evento extraordinário que (…) é determinado como: (i) constituindo um risco para a saúde pública para outros Estados, devido à propagação internacional de doença; e (ii) potencialmente exigindo uma resposta internacional coordenada”.

136. Sob essas condições, exsurge a necessidade imperativa de seguimento das diretrizes formuladas por aquela entidade internacional. Veja-se que, de acordo com o artigo 2º, alínea a, da Constituição da OMS, compete àquela entidade “atuar como autoridade diretora e coordenadora dos trabalhos internacionais no domínio da saúde”. Referido texto normativo foi internalizado pelo Brasil por meio do Decreto nº 26.042, de 17 de dezembro de 1948, tornando compulsórias para o país a adoção das medidas indicadas pela Organização Mundial da Saúde em circunstâncias tais como aquelas atualmente verificadas.

137. Na execução das diretrizes de saúde emanadas da OMS, os Estados deverão observar o dever de due diligence, devendo atuar “utilizando-se de seus melhores esforços para lidar com certos riscos, ameaças ou danos”, o que engloba o obrigação de fazer tudo quanto seja razoavelmente esperado para diminuir as lesões à saúde coletiva.

138. A razão de ser essencial do dever de due diligence no âmbito da OMS decorre do compromisso firmado entre os países de mutuamente envidarem esforços para conter quadros epidêmicos, evitando, por exemplo, que a transmissão de infecções de modo transfronteiriço possa gerar quadros de crise global ou, quando isso não é possível, que ao menos sejam reduzidos os efeitos deletérios das enfermidades.

139. Quanto ao dever de não causar danos, este implica a obrigação de máxima precaução em torno de temas relacionados à saúde e à integridade humanas. De acordo com o Projeto de Artigos sobre Danos Transfronteiriços decorrentes de Atividades de Risco, formulado pela Comissão de Direito Internacional da Organização das Nações Unidas (ONU), os Estados devem prevenir a ocorrência de danos transnacionais adotando todas as providências necessárias para minimizar os riscos associados.

140. Esse dever aparece de forma explícita em documentos internacionais referentes a outras matérias, tais como a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, que ratificou os princípios da ONU a respeito do meio ambiente humano. Em conformidade com o Princípio nº 2 daquela declaração:

os Estados têm o direito soberano de aproveitar seus próprios recursos segundo suas próprias políticas ambientais e de desenvolvimento, e a responsabilidade de velar para que as atividades realizadas dentro de sua jurisdição ou sob seu controle não causem danos ao meio ambiente de outros Estados ou de zonas que estejam fora dos limites da jurisdição nacional.

141. No que tange ao dever de proteger o direito à vida, este encontra respaldo no art. 6º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, firmado em 1966 e internalizado no Brasil por meio do Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. A obrigação dos Estados decorrente do mencionado dispositivo não abarca apenas a responsabilidade por não extirpar intencionalmente as vidas dos cidadãos que estejam sob sua jurisdição. É preciso, também, que sejam realizados todos os esforços razoáveis para salvaguardar as vidas que estejam sob sua responsabilidade.

142. Nesse sentido, importa verificar que a jurisprudência de cortes internacionais de direitos humanos tem reconhecido como parte inerente ao direito à vida a adoção de medidas capazes de garantir com efetividade a proteção da integridade física dos cidadãos, tal como decidiram o Tribunal Europeu de Direitos Humanos no caso Calvelli e Ciglio v. Itália e a Corte Interamericana de Direitos Humanos em Ximenes Lopes v. Brasil, conforme se extrai dos trechos a seguir adunados

Calvelli e Ciglio v. Itália (TEDH): “O Tribunal assinala que, em virtude do artigo 2º [da Convenção Europeia sobre Direitos Humanos], a Itália estava obrigada a ter estabelecido um marco regulatório que obrigasse os hospitais, tanto públicos quanto privados, à adoção de medidas adequadas para assegurar a proteção à vida de seus enfermos”.

Ximenes Lopes v. Brasil (CorteIDH): “O Tribunal dispôs que o dever dos Estados de regular e fiscalizar as instituições que prestam serviço de saúde, como medida necessária para a devida proteção da vida e integridade das pessoas sob sua jurisdição, abrange tanto as entidades públicas e privadas que prestam serviços públicos de saúde quanto aquelas instituições que prestam exclusivamente serviços privados de saúde (…). Especialmente com relação às instituições que prestam serviço público de saúde, como fazia a Casa de Repouso Guararapes, o Estado não somente deve regulá-las e fiscalizá-las, mas tem, ademais, o especial dever de cuidado com relação às pessoas ali internadas”.

143. Já em matéria de proteção ao direito à saúde, ressaem as obrigações jurídicas dos Estados de promoverem a “prevenção e o tratamento das doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta contra essas doenças” e de “criação de condições que assegurem a todos assistência médica e serviços médicos em caso de enfermidade”, conforme preconizado pelo Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), em seu art. 12, (2), c e d.

144. A esses deveres objetivos do Estado, acrescenta-se o necessário cumprimento das obrigações jurídicas referidas no Regulamento Sanitário Internacional (RSI), documento já mencionado anteriormente que tem o propósito de estabelecer condutas diante de eventos que afetem a saúde coletiva de múltiplos territórios. As medidas normativas determinadas pelo RSI são assim enumeradas por Coco e Dias:

Outras obrigações de due diligence que repousam no RSI incluem: o dever de avaliar se os eventos anteriormente descritos podem constituir potencialmente uma “emergência de saúde pública de importância internacional” e, em caso positivo, de notificar – eficientemente e, em qualquer caso, dentro de 24 horas – a Organização Mundial de Saúde (OMS) a respeito da avaliação e de qualquer medida de saúde que o Estado em questão já tenha adotado em resposta (Artigo 6(1)); o dever de continuamente compartilhar todas as informações de saúde pública relevantes com a OMS (Artigo 6(2)), mesmo em caso de eventos de saúde pública não usuais ou inesperados, como é o caso do surto de COVID-19 (Artigo 7); o dever de embasar a implantação de qualquer medida de saúde em princípios científicos, nas evidências disponíveis em qualquer orientação, recomendação ou informação provida pela OMS (Artigo 43(2)).

145. Consoante enunciado pelos autores do estudo, extrai-se da leitura do Artigo 43(2) do RSI um dever objetivo dos Estados de promoverem políticas públicas de enfrentamento às emergências sanitárias baseadas em critérios científicos e nas recomendações provenientes da Organização Mundial da Saúde.

146. Por fim, mas não menos importante, é imperativo mencionar, como derivação direta do princípio de due diligence, o dever de proteção às pessoas em caso de desastres, que encontra fundamento no artigo 10 do Projeto de Artigos da Comissão de Direito Internacional da ONU sobre a matéria. Extrai-se do dispositivo que “O Estado afetado tem o dever de assegurar proteção às pessoas e prover assistência emergencial no seu território” (1) e que “O Estado afetado tem o papel primário na direção, no controle, na coordenação e na supervisão dessa assistência emergencial” (2)[86], o exato oposto do que tem perseguido o governo federal, por meio de seu principal representante.

147. De todas essas enunciações concretas do dever de due diligence, extraem-se dois horizontes de responsabilização do Estado Brasileiro. (a) De um lado, parece claro que, em sendo o país signatário dos principais atos de direito internacional acionados na situação sob apreço, o direito ao atendimento dos critérios técnicos e científicos nas práticas sanitárias estatais incorporou-se ao patrimônio jurídico dos cidadãos brasileiros com caráter, ao menos, de norma supralegal (conforme art. 5º, §2º, da Constituição). (b) De outro lado, também é evidente que a desobediência aos referidos critérios deriva da responsabilidade pessoal do ocupante eventual do cargo de Presidente da República, porquanto as responsabilidades internacionais do Estado Brasileiro atraem a este último a imputação imediata de obrigações cogentes perante instâncias multilaterais.

148. E esta é a vocação da Lei do Impeachment ao classificar, entre os crimes contra a existência da União, a violação dos tratados legitimamente feitos com nações estrangeiras.

149. Quanto a esse último tema, não é demais recobrar a possibilidade de acionamento perante órgãos internacionais, prevista no artigo 75 da Constituição da OMS, o qual, em tese, poderia até mesmo embasar eventual queixa de outro Estado que venha a se sentir afetado pela ausência de providências eficazes adotadas pelo Brasil:

Artigo 75

Qualquer questão ou divergência referente à interpretação ou aplicação desta Constituição que não for resolvida por negociações ou pela Assembléia da Saúde será submetida ao Tribunal Internacional de Justiça, em conformidade com o Estatuto deste Tribunal, a menos que as partes interessadas concordem num outro modo de solução.

150. Com as características já conhecidas do novo coronavírus, não seria de espantar que outra nação buscasse a Corte Internacional de Justiça para que sejam adotadas providências em face do comportamento vacilante do governo brasileiro na prevenção à pandemia. Isso porque a omissão do Estado Brasileiro em prover todos os meios para a contenção da pandemia pode acarretar a ocorrência de danos transfronteiriços, desperdiçando-se, assim, todo o esforço em que se engajaram numerosas nações de todo o globo para conter o avanço da enfermidade.

151. Inequívoco, ainda, que a conduta presidencial exorbitou o campo estrito de discricionariedade administrativa no campo da saúde. Note-se que, entre os princípios regentes da Administração Pública, na forma do art. 2º da Lei nº 9.784/1999, encontra-se o da razoabilidade, de modo que a atuação dos agentes públicos deve atentar, ao “atendimento a fins de interesse geral”, à “objetividade no atendimento do interesse público” e à “adequação entre meios e fins”.

152. A constatação de que a atuação pessoal do Presidente da República, diante da crise do novo coronavírus, pautou-se pela contínua lesão ao princípio da razoabilidade acarretou atentado significativo a um princípio basilar da Administração Pública, que, como tal, impõe o reconhecimento de ato de improbidade, na forma do art. 11, caput, da Lei nº 8.429/1992. Embora a aplicação do referido dispositivo não acarrete, por si só, a deflagração de impeachment, por certo que o reconhecimento da referida lesão qualifica os crimes de responsabilidades já descritos à exaustão.

153. Diante do exposto, verificam-se violadas as obrigações legais do Denunciado, tanto do ponto de vista interno (dever de proteção à saúde dos indivíduos), quanto do ponto de vista externo (dever de cumprimento dos tratados internacionais), restando configurados os tipos penais veiculados pelos arts. 5º, inciso 11; 7º, inciso 9; e 8º, inciso 7 e 8, da Lei nº 1.079/1950.

III. DOS PEDIDOS
154. Por todo o exposto, apresentam os seguintes requerimentos:

a) Que seja recebida, processada e julgada procedente a denúncia contra o Presidente da República por crime de responsabilidade, com fundamento no art. 85, caput e incisos I, II, III, IV e V da Constituição da República e nos termos das tipificações decorrentes da incidência do art. 5º, inciso 11; do art. 6º, incisos 1, 2, 5, 6 e 7; do art. 7º, incisos 5, 6, 7, 8 e 9; do art. 8º, incisos 7 e 8; e do art. 9º, incisos 4, 5, 6 e 7, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, a efetivamente habilitar o recebimento da denúncia, conforme o art. 218, § 2º, do RICD, seu processamento e procedência, seguidos da decretação da acusação pela Câmara dos Deputados e remessa ao Senado Federal, visando à suspensão das funções presidenciais e ao julgamento definitivo do impeachment, com a prolação de decisão condenatória e subsequente destituição do acusado do cargo de Presidente da República, com a sua inabilitação para o exercício de função pública pelo prazo de oito anos, nos termos do artigo 52, parágrafo único, da e os artigos 15 a 38 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950 e de acordo com o objeto acima sintetizado;

b) Uma vez que os Autores e as Autoras da presente denúncia procedem ao seu respectivo protocolo em formato virtual, com assinaturas de apenas parte dos Denunciantes certificadas eletronicamente, na forma da Medida Provisória nº 2.200-2/2001 e, assim reconhecida sua autenticidade para a finalidade constante no art. 218, §1º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados; e considerando as excepcionais circunstâncias atualmente vivenciadas em face da pandemia da COVID-19, que não permitem deslocamentos para certificação digital, reconhecimentos de firma em cartórios nem mesmo a autenticação presencial de documentos (conforme Ato da Mesa Diretora nº 118/2020, a impossibilitar o comparecimento individual às dependências da Câmara dos Deputados), requerem a validação presencial ou eletrônica posterior das assinaturas restantes, sem que haja prejuízo ao andamento da denúncia, tampouco impugnação da autoria daqueles que suprirão os requisitos formais tão logo seja restabelecida a normalidade dos serviços cartoriais e de secretarias referenciados;

c) a juntada dos documentos anexos como elementos de comprovação da prática dos crimes de responsabilidade narrados na presente denúncia;

d) a produção de prova testemunhal, mediante a oitiva das pessoas indicadas a seguir, as quais deverão ser intimadas para tal finalidade em conformidade ao que dispõe o artigo 18 da Lei n. 1.079/50, sem prejuízo da produção de outras provas, de qualquer natureza, visando à comprovação dos fatos ora apontados como ensejadores de crimes de responsabilidade;

ROL DE TESTEMUNHAS:

1. Carlos Henrique Oliveira.

2. Francisco de Assis Sampaio (Dida Sampaio).

3. Artur Chioro.

4. Jefferson Botega.

5. Sérgio Fernando Moro.

6. Clarissa Oliveira.

7. Renato Onofre.

8. Ricardo Della Coletta.

Pedem deferimento.

Brasília, 21 de maio de 2020.

*As notas de rodapé foram excluídas para facilitar a leitura do texto