É possível derrotar a normalização da mentira, por Enio Verri

Enio Verri*

O Brasil vive um período sinistro da sua história, quando a suprema corte se dá ao trabalho de debruçar sobre a possibilidade de debater a concessão do direito de mentir, ofender, detratar, difamar, como legítima liberdade de expressão. É difícil reconhecer que nunca se imaginou isso, com todos os recursos tecnológicos de comunicação que o século 21 disponibiliza. Numa república que, até 2014, construía acelerador de partículas e submarino nuclear; foi a sexta economia mundial; berço de pensadores progressistas de renome internacional, as instituições estão, distraidamente, relativizando a diferença entre opinião e calúnia. Não desqualificar o falso dilema impede a sociedade de se atentar a problemas urgentes, sanitários, econômicos e políticos, além de ser um retrocesso cultural.

Porém, esse movimento não começou na semana passada, mas em 2014, com a Lava Jato, a operação em segredo de justiça mais vazada e espetacularizada da história do Brasil. Foi o silêncio da sociedade à construção diária dos absurdos que se permitiu a instalação de indústrias de mentiras e de depredação da honra alheia. Para ficar num exemplo, em qualquer país onde as instituições se dizem sérias, grampear a central telefônica do escritório de defesa de quem o MPF investiga é o suficiente para pulverizar a credibilidade dos promotores heróis e encerrar as investigações. Ao contrário, Dallagnol estava, até há pouco tempo, estrelando em palestras e entrevistas, com uma insistente retórica de combate à corrupção. Essa condição foi construída sob insistente campanha na imprensa comercial, santificando e satanizando, a depender de quem, os atores políticos.

Com honrosas exceções, conferiu-se uma verdade absoluta às investigações e operações pirotécnicas da força-tarefa. Ela que usou, por exemplo, mais de 200 policiais federais para arrastar de casa um investigado que nunca se recusou a colaborar e a prestar depoimentos. Ao mesmo tempo, ela teve o seu promotor pop star flagrado, negociando U$ 5 milhões para livrar a multa de US$ 15 milhões de um advogado. A sociedade vai pagar um preço muito caro por não ter coibido, a tempo e com a devida veemência, até mesmo expondo ao ridículo, um Power Point colegial apresentado durante coletiva de uma imprensa que não questionou o fato. Talvez, se a mídia comercial expusesse a peça com o mesmo ódio com que expôs as tais pedaladas fiscais da presidenta Dilma Rousseff, a opinião pública reprovasse os métodos tortuosos de delações sem prova, que levaram à condenação de pessoas inocentes.

LEIA TAMBÉM

Enfim, a Lava Jato, que tentou se apropriar de R$ 2,5 bilhões da Petrobras, é um enredo cuja a própria narrativa é de detratação, insulto, cerceamento à verdade. Não causa estranheza, nesse sentido, que a sociedade seja envolvida em um falso debate promovido pelos mesmos interesses que a mantiveram presa a uma investigação fraudulenta, como se tem revelado. Enquanto a imprensa diz para a opinião pública que ela não sabe a diferença entre liberdade de expressão e injúria, difamação e calúnia, ela não insiste em investigar as relações de amizade e financeiras entre a família Bolsonaro, Queiroz, Adriano da Nóbrega e mais uma série de pessoas umbilicalmente ligadas à máfia. E, assim, sob a mais profunda alienação social, o Brasil segue bovinamente rumo a 200 mil mortos. O presidente continha praticando a política que ele conhece, há mais de 30 anos, trocando apoio por espaços de decisão em estatais e votos para livrar-lhe da cassação por crime de responsabilidade e para cumprir a agenda ultraliberal de submissão do Brasil ao capital internacional, transferindo o patrimônio brasileiro a outros povos.

Economia

É surreal a realidade nacional, que mais parece uma alucinação. O País tem um governo eleito pelo voto direto, que persegue cidadãos que combatem o fascismo. Já no Congresso Nacional, por meio de sua base e do interesse de muitos parlamentares, Bolsonaro trava uma guerra feroz para calar os efeitos da CPMI das Fake News, que muitas revelações trouxe para a sociedade. Infelizmente, a involuntária inconsciência da maioria da população e a perversidade de quem domina a política e a economia produzirão um rastro de destruição, fome, miséria e atrasos culturais mais difíceis de superar que os econômicos. Se serve de consolo, as digitais estarão para sempre na história. Porém, será que vale o retrocesso, a fome, a submissão?

É vital reagir à mentira de que o Brasil não tem condições de ser grande e gerir sua própria riqueza. Os brasileiros já demonstraram a competência, ao longo da história, construindo empresas e tecnologias para as demandas da suas condições geográficas e geológicas. Antes de ser vendida por menos de 10% do seu valor, a Vale do Rio Doce era uma empresa respeitada no mundo. A Petrobras exporta tecnologia para exploração de petróleo em águas super profundas. Os Correios são uma excelente e moderna empresa de logística. Já a Caixa, foi utilizada para produzir o maior programa de transferência de riqueza da história do Brasil, o MCMV. São essas e outras empresas que vão tirar o Brasil das crises. O País deve se encontrar com verdade, urgentemente, sob pena de permitir que sua capacidade lhe seja tirada, pelas mentiras.

*Enio Verri é economista e professor aposentado pelo Departamento de Economia da Universidade Estadual de Maringá e está deputado federal e líder da bancada do Partido dos Trabalhadores na Câmara dos Deputados