A defesa da ‘Paz entre os povos’ da Conferência Socialista de Zimmerwald e a guerra Rússia-Ucrânia

Por Milton Alves*

A Conferência de Zimmerwald, realizada de forma clandestina na Suíça, de 5 até 8 de setembro de 1915, foi um marco na luta dos socialistas revolucionários contra a primeira guerra mundial.

O manifesto aprovado na reunião traçou o sentido e o roteiro da posição da esquerda socialista contra a guerra dos capitalistas-imperialistas. Os setores mais ativos da classe trabalhadora adotaram uma tática de luta contra as burguesias nacionais, minando os esforços de guerra em seus próprios países. Lenin [e seus camaradas bolcheviques], durante o curso do conflito mundial interimperialista, levantou as teses da transformação da “guerra imperialista em guerra civil de emancipação dos trabalhadores e do derrotismo revolucionário”.

A guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia reacendeu a necessidade do debate sobre o caráter de classe do pacifismo e da retomada política da bandeira da paz entre os povos, o que polariza as opiniões entre as diversas correntes políticas da esquerda nacional.

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“Miséria e privações, desemprego e aumento do custo de vida, doenças e epidemias, são os verdadeiros resultados da guerra. Por décadas as despesas de guerra absorverão o melhor das forças dos povos comprometendo a conquista de melhorias sociais e dificultando todo o progresso”, diz um trecho do manifesto sobre aquela guerra de rapina — o mesmo se pode afirmar hoje.

Essa guerra sustentada por Putin/Otan é um atraso, e não tem nada de progressivo, ou que seja, minimamente, favorável aos povos e as nações oprimidas: ao contrário, favorece a reação conservadora, reforça o militarismo em escala global, isola a China, reagrupa mais ainda a Europa com os Estados Unidos e provoca o retorno de velhos conflitos e divisões nacionais.

Economia

A esquerda precisa levantar agora, com paixão militante, um vigoroso movimento em defesa da paz entre os povos, um cessar-fogo imediato entre Rússia e Ucrânia, a pauta do fim da Otan, o desarmamento das milícias neonazistas envolvidas no conflito, a retomada das negociações no âmbito das Nações Unidas e o fim das políticas de sanções e de futuras anexações territoriais.

A seguir leia a íntegra do texto de Zimmerwald e tire as suas conclusões.

Manifesto de Zimmerwald – Suíça de 5 até 8 de setembro de 1915

“Proletários da Europa!

A guerra dura há mais de um ano! Milhões de corpos cobrem os campos de batalha. Milhões de homens ficarão mutilados para o resto dos seus dias. A Europa se tornou um gigantesco matadouro de homens. Toda a civilização criada pelo trabalho de muitas gerações está condenada à destruição. A barbárie mais selvagem comemora hoje o seu triunfo sobre tudo o que até agora constituía o orgulho da humanidade.

Quaisquer que sejam os principais responsáveis diretos pelo desencadeamento desta guerra, uma coisa é certa: a guerra que causou todo esse caos é produto do imperialismo. Esta guerra surgiu da vontade das classes capitalistas de cada nação de viver da exploração do trabalho humano e das riquezas naturais do planeta. De tal forma que as nações economicamente atrasadas ou politicamente fracas caem sob o jugo das grandes potências que, com esta guerra, tentam refazer o mapa do mundo, a sangue e fogo, de acordo com os seus interesses exploradores. É assim que nações e países inteiros como a Bélgica, a Polónia, os Estados dos Balcãs e a Armênia correm o risco de serem anexados no todo ou em parte pelo simples jogo das compensações.

Os objetivos da guerra aparecem em toda a sua nudez à medida que os acontecimentos se desenvolvem. Peça a peça, caem os véus que escondem da consciência dos povos o significado desta catástrofe mundial.

Os capitalistas de todos os países, que cunham com o sangue dos povos a moeda vermelha dos lucros da guerra, afirmam que a guerra vai servir para a defesa da pátria, da democracia e da libertação dos povos oprimidos. Eles mentem. A verdade é que, na verdade, eles enterram sob as casas destruídas, a liberdade dos seus próprios povos ao mesmo tempo que a independência das outras nações. O que vai resultar da guerra serão novas cadeias e novos fardos e é o proletariado de todos os países, vencedores ou vencidos que terá que suportar.

“Aumento do bem-estar”, disseram eles, quando a guerra foi declarada.

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Miséria e privações, desemprego e aumento do custo de vida, doenças e epidemias, são os verdadeiros resultados da guerra. Por décadas as despesas de guerra absorverão o melhor das forças dos povos comprometendo a conquista de melhorias sociais e dificultando todo o progresso.

Colapso da civilização, depressão econômica, reação política; estes são os beneficiários deste terrível conflito de povos.

A guerra revela assim o verdadeiro caráter do capitalismo moderno que se revelou incompatível não só com os interesses das classes trabalhadoras mas também com as condições elementares de existência da comunidade humana.

As instituições do regime capitalista que dispunham da sorte dos povos, dos governos – monárquicos ou republicanos – a diplomacia secreta, as poderosas organizações patronais, os partidos burgueses, a imprensa capitalista e a Igreja: sobre todas elas pesa a responsabilidade desta guerra nascida de uma ordem social que os nutre, que eles defendem e que não serve mais do que os seus interesses.

Trabalhadores!

Vós, ontem explorados, despojados, desprezados, foram chamados irmãos e camaradas quando chegou a hora de vos enviar para o massacre e a morte. E hoje que o militarismo vos mutilou, destruiu, humilhou, esmagou, as classes dominantes e os poderosos reclamam de vós além disso a abdicação dos vossos interesses e a renúncia aos vossos ideais, em uma palavra, uma submissão de escravos à paz social. Eles tiram a possibilidade de expressar suas opiniões, seus sentimentos, seus sofrimentos. Proíbem-vos de formular as vossas reivindicações e de as defender. Imprensa controlada, liberdades e direitos políticos pisados: é o reinado da ditadura militarista com punho de ferro.

Nós não podemos nem devemos permanecer inativos perante esta situação que ameaça o futuro da Europa e da humanidade.

Durante muitos anos, o proletariado socialista lidera a luta contra o militarismo; com uma crescente apreensão os seus representantes se preocuparam nos seus congressos nacionais e internacionais com o perigo de guerra que o imperialismo fazia passo a passo mais ameaçador. Em Estugarda, em Copenhagem, em Basileia, os congressos socialistas internacionais traçaram o caminho a seguir pelo proletariado.

No entanto, partidos socialistas e organizações operárias de vários países, apesar de terem contribuído para a elaboração destas decisões, esqueceram e repudiaram desde o início da guerra as obrigações que lhes impunham. Seus representantes e dirigentes apelaram e induziram os trabalhadores a abandonarem a luta de classes, o único meio possível e eficaz para a emancipação proletária. Eles votaram com as suas classes dirigentes os orçamentos de guerra; colocaram-se à disposição dos seus governos para lhes prestar os mais diversos serviços; tentaram através da sua imprensa e seus enviados vencer os neutros à política de seus governos respectivos; eles incorporaram os governos “ministros socialistas” como reféns para a preservação da “União Sagrada” e para isso aceitaram perante a classe trabalhadora partilhar com as classes dirigentes as responsabilidades atuais e futuras desta guerra, dos seus objetivos e de seus métodos. E da mesma forma que aconteceu com os partidos separadamente, o mais alto organismo das organizações socialistas de todos os países, o Gabinete Socialista Internacional, também falhou e faltou às suas obrigações.

Estas com as causas que explicam que a classe trabalhadora que não tinha sucumbido ao pânico nacional do primeiro período da guerra ou que pouco depois se tinha libertado dele, ainda não tenha encontrado no segundo ano do massacre de povos os meios para empreender em todos os países uma luta ativa e simultânea pela paz.

Nesta situação intolerável, nós, representantes dos partidos socialistas, dos sindicatos e das minorias destas organizações; alemães, franceses, italianos, russos, polacos, letões, romenos, búlgaros, suecos, noruegueses, suíços, holandeses, nós que não nos colocamos no campo da solidariedade nacional com os nossos exploradores, mas que permanecemos fiéis à solidariedade internacional do proletariado e à luta de classes, reunimo-nos aqui para retomar os laços quebrados das relações internacionais, para convocar a classe trabalhadora a recuperar a consciência de si mesma e colocá-la na luta pela paz.

Esta luta é a luta pela liberdade, pela fraternidade dos povos, pelo socialismo. É preciso empreender esta luta pela paz, pela paz sem anexações nem indenizações de guerra. Mas uma paz assim só é possível se condenar qualquer projeto de violação dos direitos e das liberdades dos povos. Essa paz não deve conduzir nem à ocupação de países inteiros nem às anexações parciais. Nenhuma anexação, nem reconhecida nem oculta e muito menos ainda subordinações econômicas que, devido à perda de autonomia política que elas implicam, se tornam ainda mais intoleráveis. O direito dos povos a disporem de si mesmos deve ser o fundamento inabalável na ordem das relações de nação para nação.

Trabalhadores!

Desde que a guerra se desencadeou, vocês colocaram todas as vossas forças, todo o vosso valor e capacidade de resistência ao serviço das classes possuidoras para se matarem uns aos outros. Hoje em dia é preciso que, permanecendo no terreno da luta de classes irredutível, aja em benefício de sua própria causa pelos fins sagrados do socialismo, pela emancipação dos povos oprimidos e das classes escravizadas.

É dever e tarefa dos socialistas dos estados beligerantes desenvolver essa luta com toda a sua energia. É o dever e a tarefa dos socialistas dos Estados neutros ajudar os seus irmãos, por todos os meios, nesta luta contra a barbárie sanguinária.

Nunca na história do mundo houve tarefa mais urgente, mais elevada, mais nobre; o seu cumprimento deve ser o nosso trabalho comum. Nenhum sacrifício é demasiado grande, nenhum fardo demasiado pesado para alcançar este objectivo: o restabelecimento da paz entre os povos.

Trabalhadores e trabalhadoras, pais e mães, viúvas e órfãos, feridos e mutilados, a todos vós que estão sofrendo a guerra e pela guerra, nós vos dizemos: Acima das fronteiras, acima dos campos de batalha, acima dos campo de batalha, acima das campos de guerra, país e cidades devastadas. Proletários de todos os países, uni-vos!

Zimmerwald, setembro de 1915.

Assinam pela delegação alemã: Georg Ledebour, Adolf Hoffmann; pela delegação francesa: A. Bourderon, A. Merrheim; pela delegação italiana: G. E. Modigliani, Constantino Lazzari; pela delegação russa: Vladimir Lenin, Paul Axelrod, M. Bobrov; pela delegação polaca: St. Lapinski, A. Varski, Cz Hanecki. Em nome da delegação romena: C. Racovski; em nome da delegação búlgara: Vassil Kolarov. Pela delegação sueca e norueguesa: Z. H őglund, Ture Nerman; pela delegação holandesa: H. Roland Holst; pela delegação suíça: Robert Grimm, Charles Naine. Os dirigentes socialistas da Alemanha Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht estavam presos e não participaram da conferência, mas defendiam o fim da guerra.

*Milton Alves é jornalista e escritor. Autor dos livros ‘A Política Além da Notícia e a Guerra Declarada Contra Lula e o PT’ (2019), de ‘A Saída é pela Esquerda’ (2020) e ‘Lava Jato, uma conspiração contra o Brasil’ (2021) – todos pela Kotter Editorial.