Argentina quer aproveitar o vácuo que Bolsonaro deixou para liderar a questão ambiental na região

Primeiro foi o Chile; agora a Argentina. O presidente Alberto Fernández procura ocupar o espaço que o Brasil abandonou como líder da questão ambiental na América do Sul. A posição é estratégica para a interlocução com os demais líderes mundiais como Joe Biden, Emmanuel Macron e Angela Merkel.

A cada nova reunião de cúpula, o presidente Alberto Fernández levanta uma bandeira ainda desconhecida para os argentinos: a do meio-ambiente. Fernández procura liderar a agenda climática na América do Sul, antes liderada pelo Brasil. Por oposição a Jair Bolsonaro, em franco descrédito perante as potências mundiais, o presidente argentino tenta ocupar o vácuo brasileiro para, através da questão ambiental, aproximar-se dos principais líderes, tornando-se o interlocutor válido na região.

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“Alberto Fernández que ocupar esse vácuo. Não é apenas uma análise dos fatos. É também informação interna que tenho dos assessores do presidente”, confirma à RFI, o analista político argentino, Raúl Aragón.

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“Há um espaço vazio neste momento. Um espaço que o Brasil deixou de ocupar em matéria ambiental. E esse espaço relaciona-se hoje com uma imensa e crescente demanda popular. Alberto Fernández, com um bom olfato político, aproveita os foros internacionais para se posicionar nesse espaço”, explica Aragón.

O Chile tentou primeiro
Quem teve a visão desse vácuo primeiro foi o presidente chileno, Sebastián Piñera. Em novembro de 2018, Jair Bolsonaro, como presidente eleito, abdicou da candidatura brasileira por sediar a reunião da ONU sobre alterações climáticas. Imediatamente, Piñera abraçou a COP 25, com o objetivo de liderar as discussões que o brasileiro menosprezou.

O plano de Piñera teve sucesso até que, em outubro de 2019, eclodiram no Chile as mega manifestações que, durante meses, forçaram o presidente chileno a alterar a sua agenda, a começar por desistir da reunião de cúpula que se iniciaria em dezembro daquele ano em Santiago.

“A questão ambiental permitia a Piñera mostrar uma direita mais moderna, uma direita preocupada com um assunto que aflige o mundo e, portanto, uma agenda politicamente correta. Com a convulsão social de outubro de 2019, Piñera foi obrigado a mudar de agenda. Estrategicamente, a agenda climática na América do Sul ficou sem uma liderança”, indica à RFI o cientista político Carlos Meléndez, da Universidade Diego Portales do Chile.

“É preciso analisar o jogo do argentino Alberto Fernández não apenas com Bolsonaro, mas também com o chileno Sebastián Piñera. Desde que Fernández assumiu, houve uma disputa por protagonismo entre Fernández e Piñera. A pergunta é até que ponto a agenda ambiental de Fernández é genuína ou é apenas parte de uma estratégia de política internacional”, questiona Meléndez.

Dificuldades para atingir o objetivo
“O que aconteceu nas últimas horas na Cúpula de Líderes sobre o Clima mostra, com clareza, o lugar que a Argentina realmente ocupa neste momento. O presidente norte-americano, Joe Biden, retirou-se momentaneamente da reunião justamente quando Alberto Fernández ia iniciar o seu discurso”, ilustra à RFI o ex-chanceler argentino (2017-2019), embaixador Jorge Faurie.

Desde que Joe Biden foi eleito em novembro, o presidente argentino ressalta a questão ambiental como um dos seus assuntos prioritários. Aconteceu durante a videoconferência bilateral com Jair Bolsonaro em 30 de novembro passado e durante a recente reunião virtual do Mercosul, em 26 de março. Fernández foi o único presidente a defender uma agenda ambiental.

Também voltou ao assunto durante a recente visita à Argentina -e não ao Brasil- do diretor sênior para o Hemisfério Ocidental no Conselho de Segurança dos Estados Unidos e assistente especial de Biden, Juan González.

Crédito em troca de ação climática
Nesta semana, a questão ambiental foi o eixo do discurso do líder argentino na Cúpula Ibero-americana e, claro, na Cúpula de Líderes sobre o Clima. Nas duas reuniões, Alberto Fernández, associou a questão ambiental com as suas necessidades internas de dinheiro. A Argentina vive uma profunda escassez de dólares e de acesso ao crédito. Fernández quer trocar alívio na dívida em troca de ação climática.

“Crédito aos países em desenvolvimento, incorporando elementos de ação climática aos beneficiados e estabelecendo uma relação virtuosa entre alívio financeiro e cuidado ambiental”, propôs Fernández na Cúpula Ibero-americana na quarta-feira (21).

“Pagamentos por serviços ecossistêmicos e trocas de dívida por ação climática”, acrescentou na Cúpula de Líderes sobre Clima na quinta-feira (22). “É uma boa estratégia. Não sei se vai funcionar, mas é correta”, avalia o analista Raúl Aragón.

Limites internos à liderança regional
A força de projeção internacional de Alberto Fernández é limitada devido à sua acelerada perda de popularidade interna, apontada por todas as pesquisas de opinião.

Segundo a mais recente de todas, a sondagem da Giacobbe & Asociados, Alberto Fernández passou de 68% de imagem positiva, em abril do ano passado, a 28% um ano depois. A sua imagem negativa agora chega a 60%.

“O ponto central da Argentina de hoje é o enfraquecimento da autoridade presidencial. Isso faz com que todas as iniciativas de política exterior que Alberto Fernández tiver, carecerão de conteúdo. Na Argentina, a política exterior depende do presidente. Não temos um corpo diplomático profissional com autonomia como o Itamaraty brasileiro”, aponta à RFI o analista internacional argentino, Jorge Castro.

“Esse enfraquecimento de Fernández produz um vácuo de poder que, por sua vez, gera uma crise de governabilidade. O discurso dele tem algumas ideias interessantes e até viáveis, mas a prática desse discurso depende da autoridade efetiva do presidente, algo cada vez menor e com tendência de desaparecer”, adverte Castro.

“A Argentina enfrenta graves desafios de governabilidade. Nesse cenário político e econômico deficiente, é irrelevante se Alberto Fernández quer ou não ser um líder ambientalista. Quando ele diz aos argentinos que devemos liderar a temática ambiental regional, é como se falasse sobre o sexo dos anjos. As aspirações de liderança ambiental de Fernández não têm nenhum aval na atual realidade argentina”, conclui o ex-chanceler Jorge Faurie.

Por Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires