Convenção da OEA e a luta antirracista, por Orlando Silva

Orlando Silva*

O Brasil viveu ontem, dia 9 de dezembro de 2020, um momento histórico ao aprovar, em sessão da Câmara dos Deputados, a ratificação da Convenção Interamericana contra o Racismo. Tive a honra e a responsabilidade de presidir os trabalhos durante a aprovação da matéria.

Se o Senado seguir o mesmo caminho, o documento celebrado pela Organização dos Estados Americanos passará a integrar a legislação nacional, com força de emenda constitucional. É um passo muito importante para a construção de uma sociedade mais tolerante e livre do racismo.

É simbólico da luta que travamos contra o racismo, a discriminação e a intolerância que o texto tenha sido aprovado na véspera do aniversário de 72 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas.

Mas é demonstrativo do quanto nos falta avançar nesse rumo que a votação tenha sido articulada como uma das respostas do legislativo ao brutal assassinato do negro João Alberto, espancado até a morte por seguranças de um hipermercado. A ideia foi gestada a partir de uma audiência com juristas negros realizada pela Comissão Externa da Câmara Federal, formada para acompanhar as apurações do caso.

A carta da OEA, que passará a ter força vinculante, prevê, em seu artigo 4º, os países signatários assumem o compromisso de “prevenir, eliminar, proibir e punir, de acordo com suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, todos os atos e manifestações de racismo, discriminação racial e formas correlatas de intolerância”.

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Tão importante quanto a proibição e punição de práticas racistas é a elaboração de políticas públicas afirmativas, que persigam o objetivo de igualdade de oportunidades, sem discriminações quaisquer.

Sobre isso, a Convenção fala em adoção de medidas educacionais, trabalhistas e sociais de reparação. Aqui, o caso de João Alberto nos traz um ensinamento concreto: não podemos mais admitir a terceirização nos serviços privados de segurança, medida adotada para baratear a mão de obra, mas também para desvincular as empresas de atos praticados a seu serviço.

Aliás, como forma de envolver as empresas efetivamente no combate ao racismo estrutural, apresentei projeto de lei (PL 5160/2020) que prevê a responsabilização objetiva dos estabelecimentos em que aconteçam crimes de motivação racista, como o assassinato de João Alberto. Como medida preventiva, as empresas serão responsáveis pela preparação dos

funcionários para que não adotem práticas racistas; como medida sancionatória, poderão sofrer multas e até cassação de alvarás, nos casos mais graves.

A Convenção traz uma medida especialmente importante nesses tempos de intolerância e culto à discriminação que vivemos no Brasil. O artigo 7º da Carta assinala: “Os Estados Partes comprometem-se a adotar legislação que defina e proíba expressamente o racismo, a discriminação racial e formas correlatas de intolerância, aplicável a todas as autoridades públicas, e a todos os indivíduos ou pessoas físicas e jurídicas”. Espera-se que tal sentença ajude a constranger arroubos racistas e discriminatórios de muitas autoridades constituídas nos três poderes, a começar do presidente da República, transgressor contumaz das leis e do bom senso.

Por fim, sublinho mais duas medidas de transcendente relevância política e jurídica trazidas pela Convenção da OEA contra o racismo: o compromisso com sistemas políticos que melhor reflitam a diversidade de suas sociedades e o acesso igualitário ao sistema de justiça.

A Coalizão Negra por Direitos e nós, parlamentares negros, já temos tramitando na Câmara um projeto que visa coibir o racismo institucional, posto que somos apenas cerca de 20% do parlamento. O STF encampou a defesa de critérios que levem a conta a proporção de negros e negras para a distribuição de recursos públicos nas campanhas eleitorais. São medidas que agora ganham reforço político com a incorporação da Convenção.

Sobre o acesso igualitário à justiça ainda estamos muito distantes. Acaba de sair um estuda da Rede Observatório da Segurança mostrando que são negros 7 em cada 10 pessoas mortas pelas forças policiais nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Não fosse o bastante, o Atlas da Violência 2020 é devastador: os negros são 75,7% das vítimas de homicídios no Brasil e, entre 2008 e 2018, o número de assassinatos entre os negros cresceu 11,5%, ao passo que diminuiu 12,9% entre os brancos.

Como se vê, o desafio de construir uma sociedade mais justa passa, necessariamente, pelo combate ao racismo, que é estrutural no Brasil.

Sabemos que a mudança na legislação não irá, por si só, solucionar uma dívida histórica que remonta aos mais de 300 anos de escravidão negra no país. Mas temos certeza que o primeiro passo para conquistar uma sociedade livre do racismo é ter leis consentâneas com esse objetivo. É esse o papel do parlamento.

Não basta mais não sermos racistas. Como nos ensina Ângela Davis, é necessário sermos antirracistas. Viva a ratificação da Convenção Interamericana contra o Racismo! Vidas negras importam!

*Orlando Silva é deputado federal pelo PCdoB-SP

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