A tramoia da casa-grande para salvar Bolsonaro

O ex-ministro e escritor Roberto Amaral, em artigo especial, alerta que há nos bastidores do poder uma armação contra o país. Segundo ele, a tramoia da casa grande visa salvar a desgraça do governo Jair Bolsonaro (sem partido).

Amaral vai ao cerne da questão ao dizer que no centro centro do entendimento está a intocabilidade da “pauta Guedes”, a ser preservada com ou sem o capitão, qual seja, o projeto econômico neoliberal.

De acordo com o articulista, o freio de arrumação decorre do temor que acometeu a casa-grande, receosa de que as turbulências políticas provocadas pelo presidente irresponsável pusessem em xeque os interesses do “mercado”.

“Este é o fator decisivo; o resto, como o discurso democrático, é só aparência.”

Leia a íntegra do artigo de Roberto Amaral:

Nos bastidores do poder arma-se um golpe contra o país.

Mais uma vez, e mantendo a rotina de nossa história, a casa-grande – aquele 1% que nos governa desde a colônia – intervém na crise política e arquiteta a nova ordem: não se fala mais nas ameaças de golpe bolsonarista, ao mesmo tempo em que o impeachment do capitão (ou qualquer outra forma de defenestrá-lo) vai para as calendas gregas. O povo que se lixe, pois a classe dominante está preocupada tão-só com seus lucros e dividendos, e esses vão bem, apesar de o país ir muito mal. Vão bem, mas estavam ameaçados pelo desastre do governo. Para preservá-los, é preciso, pois, pôr ordem na casa.

Economia

Daí a intervenção da casa-grande e o “acordo de cavalheiros”, em marcha, traficado entre seus comensais para cumprimento por todos nós.

Os três grandes jornais falam alto com o silêncio sobre a tramoia transacionada pelo “mercado” com militares, ministros do STF, líderes da câmara e do senado e, sem dúvida, os procuradores do grande império. Mas já cuidaram de mudar suas linhas editoriais, adaptada aos novos tempos. Afinal, são aparelhos ideológicos do sistema. Não têm voz própria. No centro do entendimento está a intocabilidade da “pauta Guedes”, a ser preservada com ou sem o capitão. Por enquanto com ele, ou apesar dele. Aliás, o freio de arrumação decorre do temor que acometeu a casa-grande, receosa de que as turbulências políticas provocadas pelo presidente irresponsável pusessem em xeque os interesses do “mercado”. Este é o fator decisivo; o resto, como o discurso democrático, é só aparência.

A partir desse ponto de união, tudo fica mais fácil pois tudo o mais é negociável, inclusive os “limites da democracia”, inclusive nossos interesses de povo e nação, nosso futuro como país independente, nossa credibilidade junto aos parceiros internacionais. Por isso mesmo é irrelevante a quebradeira das pequenas e médias empresas e o desemprego; secundárias se tornam mesmo as milhares de mortes que a pandemia vem acumulando, graças à inépcia, a incúria e a insensibilidade do governo – e aí não se trata, apenas do capitão, mas de toda a entourage: a imagem que dela guardo é a daquela reunião vinda a público graças à decisão do ministro Celso de Mello.

O fato objetivo é que, para o “mercado”, tornou-se taticamente conveniente a permanência do capitão. Temiam os rentistas que com a água suja do banho também fosse jogada fora a criança.

O capitão, que não sabe o que é neoliberalismo, dedicar-se-á, doravante, ao que lhe interessa, salvar o mandato (e a impunidade sua, a de seus filhos e a de seus “amigos”) e, por consequência, dará tempo ao projeto golpista. Durante esse recesso não açulará suas hordas contra os demais poderes, e nossos ministros e parlamentares se quedarão em sossego. Por algum tempo, pelo menos. E os generais da récua palaciana renunciam a qualquer propósito de intervenção militar, pelo menos em seus pronunciamentos, que deverão ser mais comedidos. Não se fala mais em “novo AI-5”. A justiça, de olhos desvendados, compreenderá o gesto de boa vontade do Napoleão de hospício. Os juízes e os ministros saberão sopesar a nova realidade e saberão julgar, como os parlamentares saberão legislar, todos com as vistas voltadas para “o funcionamento normal das instituições”.
Não se sabe se o “bispo” Macedo foi ouvido.

Independentemente do neopentecostalismo comercial-eletrônico, o novo clima republicano será de entendimentos e de “mútuo respeito” entre os poderes que se vinham estranhando, para desgosto do “mercado”, que tudo apostou na agenda do neoliberalismo a la Guedes. Isto é, tudo permanecerá como dantes no Castelo de Abrantes, pelo menos até a próxima recidiva golpista. Ou até setembro, quando a curva ascendente dos efeitos catastróficos da pandemia se encontrar com a curva descendente dos indicadores da economia, transitando da desaceleração (1,1% de crescimento do PIB em 2019) para uma brutal depressão, com seu imponderável custo social.

Aí então poderão as ruas voltar a falar, dispensando porta-vozes e desconhecendo acordos que não lhes dizem respeito. A partir deste ponto, porém, qualquer conjectura de futuro, hoje, será irresponsável.

Bolsonaro, portanto, vai ficando, apesar da promessa de tragédia. É o arranjo de nossos dias. Mas, como na política não há almoço grátis, o capitão recebeu um manual de boas maneiras, um cardápio de bom comportamento, ou o que Marcos Coimbra (“Quieto, Bolsonaro, quieto”, Carta Capital 9/07/20) alcunhou de focinheira, para que não morda as mãos de seus donos. É o preço que lhe foi cobrado e que, justiça lhe seja feita, vem pagando nos últimos dez dias. Está “pianinho”. Parece, quase, um homem educado. Até voltar ao seu natural.

Os militares são os fiadores desse mostrengo. É neles que se apoia o bolsonarismo (seja o bolsonarismo “raiz”, seja o das hordas, seja o das milícias, seja mesmo o bolsonarismo “bem comportado”), e é graças a essa coluna de sustentação que o país vive sua pior tragédia em toda a história republicana. Sem ela a crônica que se conta dos dias presentes seria outra, bem diversa, e bem menos lamentável. Os militares, que trouxeram o capitão ao planalto, que governam com ele, com ele querem permanecer, pois os palácios, centros de poder, são sempre mais confortáveis que os quartéis. Para que um fique, todos precisam ficar, ou, para que todos permaneçam em suas comissões, é preciso que, até outra alternativa, permaneça o capitão ocupando o gabinete do terceiro andar do palácio do planalto.

As forças democráticas, porém, não se podem sentir comprometidas com esse arranjo ditado de cima para baixo, sem sua audiência, – que, aliás, só é requerida quando não lhe falta, como falta agora, capacidade de mobilizar a reação popular. Essa sua capacidade, ou a falta/ausência dela, é que dita o seu peso na arena política.

É evidente que, doravante, o discurso do centro liberal, clamando por democracia, mudará de tom, ao tempo em que a direita não bolsonarista, receosa dos desdobramentos de um golpe militar sem seu controle, ensarilhará as armas. Escassearão os manifestos e mais frágeis ainda ficarão as esperanças de uma grande frente em defesa da democracia e do emprego. Pelo menos enquanto durar a entente, que, se outro objetivo não tivesse, tem esse de dificultar a unidade popular contra a “pauta Guedes”.

Os percalços para a resistência, hoje, são de toda ordem, a começar pela realidade fática que impõe, antes de quaisquer considerações políticas, as dificuldades de mobilização popular. Aos problemas já conhecidos da crise de organização dos partidos de esquerda e progressistas de um modo geral, e do movimento sindical, somam-se as precauções devidas às medidas de isolamento social exigidas pela pandemia. As novas condições do país, porém, haverão de indicar às esquerdas novos instrumentos e meios de luta, e a construção de um discurso que, sem descurar da defesa da democracia, sempre ameaçada, com ou sem acordos traficados pelas elites entre os comensais da casa-grande, compreenda a urgência do combate ao neoliberalismo, e mais concretamente, à pauta Guedes, e, ainda mais precisamente, que denuncie o desemprego, o grande inimigo das massas.

Nesse quadro cresce a importância da oposição parlamentar, por mais desanimador que possa ser o desigual confronto com a maioria parlamentar, de centro direita. Grande espaço é oferecido pela campanha eleitoral que se aproxima, se os partidos de esquerda tiverem a competência histórica de divisar, para muito além de uma disputa puramente eleitoral, a oportunidade de seu aproveitamento político para denúncia do real significado do atual governo e do acordo de classe que o sustém. Mas, acima de tudo, essas eleições municipais devem ser vistas pelas esquerdas brasileiras como a grande chance de denunciar o neoliberalismo como expressão do capitalismo financeiro monopolista, de retomar o discurso ideológico, de apresentar suas teses fundamentais, ou seja, valer-se dos meios oferecidos pela campanha para a defesa do socialismo, a que renunciou desde 2002.

*Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia

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Faísca atrasada, Globo descobre que Brasil ‘pode’ entrar em depressão econômica

Publicado em 9 julho, 2020

Com atraso de quatro meses, a Globo vê a possibilidade de a economia brasileira ser empurrada pela pandemia do novo coronavírus para a depressão. O Blog do Esmael já dizia que os dados macroeconômicos, antes mesmo da calamidade, indicavam que o pior já estava acontecendo –apesar de a velha mídia blindar o ministro Paulo Guedes.

Nesta quinta-feira (9), como uma faísca atrasada, a Globo admite que a recessão enfrentada pelo Brasil em 2020 será a pior dos últimos 120 anos, qual seja, o governo de Jair Bolsonaro conseguiu dar uma marcha à ré quase ao período do imperador D. Pedro II.

Não iremos omitir a participação de Guedes e da velha mídia nesse desastre econômico, nessa aventura neoliberal, por pressuposto.

É evidente que a depressão econômica ganha velocidade de cruzeiro se o Estado contribui para isso. Uma das fórmulas é cortando salários, reduzindo investimentos públicos e ampliando vantagens para o andar de cima (vide as desonerações na folha de pagamento, etc.). E é exatamente isso que Bolsonaro e Guedes fazem, claro, com os aplausos de banqueiros, especuladores, dos barões da mídia –sobretudo a paulistana.

A depressão econômica é caracterizada pela forte queda do Produto Interno Bruto (PIB) sem que haja uma retomada consistente nos anos seguintes. No âmbito do neoliberalismo, de Guedes e Bolsonaro não há saída no final do túnel.

Nós, os brasileiros, não podemos mais –sob pena de sermos taxados de imbecis– cair no ladainha “semana que vem nós vamos” do ministro Paulo Guedes. Trata-se de “uma semana que nunca chega”, segundo o presidente nacional do PSDB, Bruno Araújo.

Para preservar o orçamento da União para os bancos, o governo fingiu que “investiu pesado” no combate à pandemia com recursos paliativos. Basta o curioso leitor comparar com os valores transferidos pelo erário para as casas bancárias nesse período de Covid-19.

No início da pandemia, em março, o Banco Central do Brasil drenou R$ 2 trilhões para os banqueiros e espera vender ativos [participação em estatais e imóveis] para o pagamento de juros e amortizações de dívida interna suspeitíssima, que não resistiria uma auditoria independente.

São insensíveis os governos neoliberais sucedâneos dos petistas Lula e Dilma, que combinavam políticas fiscalistas, do superávit primário, e algum investimento na área social. Agora, caríssimo leitor, a banca quer ficar com tudo mesmo que isso custe a vida de milhões de brasileiros.

A crise econômica só se resolve com a retomada do desenvolvimento, do pleno emprego e da capacidade de consumo de todas as classes sociais. São políticas econômicas keynesianas que, possivelmente, exigirá que o governo imprima dinheiro novo e aumente a dívida para produzir riquezas.

O endividamento nem sempre é coisa ruim para uma pessoa ou um país. Vide os casos dos Estados Unidos e do Japão, que devem mais do que o dobro de seu PIB. O Brasil, ao contrário, não deve nem metade –embora esteja sendo “roubado” há décadas numa dívida auditada.