Kakay: Pasmo existencial

“O que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesmo”
(Clarisse Lispector)

Quantas vezes somos surpreendidos, no dia a dia, pelo inusitado do que tem acontecido na política no Brasil?

Às vezes me lembro de Pessoa, na pessoa de Caeiro, “sei ter o pasmo essencial, que tem uma criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras…”. Realmente “sinto-me nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo”.

Este governo genocida não nos dá tempo de nos dedicarmos ao assunto que deveria ser o centro de todas as nossas atenções: a pandemia, o vírus, as mortes, o drama da crise sanitária.

No dia em que o Brasil completa, oficialmente, quase 50 mil mortos e 1 milhão de infectado todas as atenções estão voltadas para a corrupção da família Bolsonaro, para o Queiroz, para a prática da “rachadinha”, para a indicação de um analfabeto funcional para representar o país, como prêmio de consolação pela sua desumana ignorância, no Banco Mundial.

Cansei de ter vergonha alheia. Quero minha capacidade de me indignar por questões sérias de volta! Não posso mais ter que me idiotizar para compreender o que ocorre com os destinos de um país que não tem um Ministro da Saúde no meio de uma pandemia mundial, que não tem sequer um plano para contabilizar os mortos. Eu não quero ter que explicar, para as pessoas que não vivem no Brasil, que nós temos um Presidente que incentiva seus seguidores a invadirem hospitais a pretexto de verificar se os médicos estão mentindo e que a doença não é tão grave. E o pior, explicar porque algumas pessoas seguem esta voz insana, uma voz à procura de um cérebro, e invadem hospitais.

Um país estranho no qual foi feito o impeachment de uma Presidente sem que ela tivesse cometido o crime de responsabilidade e, agora, o Congresso se nega a discutir o impeachment quando o atual Presidente comete crimes de responsabilidade aos borbotões, quase diariamente.

Economia

Um país que está deixando de ser, sequer, o país do futuro, pois a mediocridade está matando todos os sonhos. Só tem futuro quem sonha, quem acredita. Eu confio mais nos que são capazes de sonhar, mas como viver sob o jugo da completa obscuridade?

Victor Hugo disse no imortal Os Miseráveis: “Julgar-se-ia bem mais corretamente um homem por aquilo que ele sonha do que por aquilo que ele pensa”. Andei o Brasil nos últimos anos a discutir o excesso de punitivismo, fui a todos os espaços possíveis usando aquilo que a advocacia me deu: voz.

Em todos os lugares em que estive alertei que deveríamos ter a humildade de, às vezes, nos mirar na natureza. A escuridão não cai de uma só vez. Não somos surpreendidos ao meio dia com uma noite fechada, que cai em segundos em pleno lago Paranoá. A natureza é sábia, o entardecer vai afastando a luz, vai apagando o dia e a noite começa a se impor, devagarinho, até que chegue à plenitude da força da escuridão. E nós vamos nos acostumando a falta de luz.

Assim é o regime obscurantista. Vai aos poucos nos tirando a capacidade de resistir, de indignar, de protestar, de reagir. Até que, vencidos pela mediocridade deste projeto fascista, nós percamos a voz, o ar. E sem ar e sem voz não conseguimos resistir. Nos tornamos cidadãos como que afetados pelos efeitos do coronavírus sem estarmos infectados pelo vírus, mas infectados pelo verme do bolsonarismo. Um estado de letargia, sem inteligência, sem capacidade sequer de protestar.

Mais uma vez socorro-me de Victor Hugo: “Chega a hora em que não basta apenas protestar: após a filosofia, a ação é indispensável”. E, insisto, é necessário voltar a acreditar que temos que enfrentar esta mediocridade que nos deprime. O país precisa voltar a acreditar que existe vida fora desta mediocridade.

Eu me nego a ser pautado por este bando de arrematados idiotas, corruptos e incompetentes. A sociedade está tomando força e se posicionando. São vários os grupos e manifestos. É necessário que todos estes apoios sejam repetidos e reforçados com ações individuais.

Em tempo de isolamento vamos cada um, também isoladamente, dizer basta, chega, encheu o saco!

“Matar o sonho é matar-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso” (Fernando Pessoa)

*Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

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