Assim na Espanha franquista, assim na Alemanha de Hitler, assim no Brasil dos idos da última ditadura.
Nada disso nos é estranho.
Jamais por loucura, mas inegavelmente por método, o capitão, pajeado pelos seus generais, acirra o esgarçamento social e estimula o ódio, investe na desconstrução do pacto nacional e promove o conflito.
Rejeita o papel de magistrado – inerente ao cargo de Presidente da República – para portar-se como chefe de facção. Não é e não sera, jamais, um magistrado, um estadista, não apenas por não ter o necessário preparo, mas porque não deseja sê-lo. Está no cerne de sua formação – e viceja no espaço político-ideológico em que atua, e que cultiva – a desconfiança irremovível em relação às instituições democráticas, Presidência incluída.
Desorganiza as instituições e, semeando sempre ventos, não teme colher tempestades. Ao contrário, é delas que se nutre.
O confronto, a ação direta, o apelo à “voz das massas” (com os riscos das vaias do Maracanã) é sua tática; a política de terra arrasada é sua estratégia.
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A síntese das variadas versões conta a provocação do general falangista Millán-Astray interrompendo uma sessão de colação de grau na Universidade de Salamanca, em outubro de 1936, aos gritos de “Morra a intelectualidade traidora! Viva a morte!”. Nos albores do nazismo fez fama a frase “Quando me falam em cultura, eu puxo o revólver”, atribuída a Joseph Goebbels, ministro da Propagada de Hitler. Entre nós ficou célebre o artigo de Alceu Amoroso Lima (“Terrorismo cultural”, Jornal do Brasil, 7/5/1964) denunciando o regime de trevas que a ditadura militar começava a montar ao eleger estudantes, intelectuais, artistas, pesquisadores, professores em geral como adversários a serem expelidos da vida nacional.
O que se seguiu, entre nós, é história sabida, com o ataque à universidade (que, para além do corte de verbas, compreendeu invasões por tropas militares) e seus estudantes, professores e pensadores, com o rol de demissões, prisões e exílio tendo como pano de fundo implacável censura aos órgãos de imprensa, às atividades artísticas e culturais e à atividade editorial.
Censura generalizada de um lado; de outro, apoio da grande imprensa. A história do grupo Globo (de sabujice bem recompensada) não constitui exceção.
Os tempos mudam, os regimes e as ideologias mudam em suas feições, em métodos, o que não muda é a ojeriza do autoritarismo (sempre a caminho do totalitarismo) à inteligência e ao pensamento livre. As falanges franquistas faziam frente ao que chamavam de “pseudo-intelectualidade liberal maçônica”, o hitlerismo exorcizava os comunistas e os judeus. O governo – aqui representado pelo capitão, os generais associados e penduricalhos como o ministro da Educação –move guerra sem tréguas contra a ciência, contra a educação, contra a pesquisa, contra a inteligência. Dizem seus porta-vozes estar combatendo um tal de “marxismo cultural”.
Os antigos comandos de caça aos comunistas – dos primeiros tempos da ditadura e que se anteciparam ao golpe – são agora comandos de caça à escola livre, à liberdade de cátedra, ao ensino e à pesquisa, à Razão, em suma. E para combatê-la o novo regime vai direto ao ponto: a universidade e, de especial, a universidade pública, responsável por 90% da pesquisa científica. Após cortar recursos destinados às bolsas de estudos que formam nossos doutores, nossos professores e nossos pesquisadores, e o custeio de investigações na fronteira do conhecimento, o bolsonarismo investe contra o ensino das chamadas ciências humanas – nomeadamente sociologia, antropologia e filosofia –, as fontes por excelência da reflexão criadora.
Não nos iludamos, pois o governo sabe o que pretende: o retrocesso na educação, no desenvolvimento cientifico e tecnológico, sobre ser um crime de lesa-pátria, é uma ameaça à democracia.
O corte de verbas destinadas ao ensino é um atentado contra o futuro de nosso país, e contribui para aprofundar as desigualdades sociais, afastando do ensino superior milhares de jovens sem condições de custear sua própria educação. Mas não encerra a tragédia toda, pois, presidindo as ações do novo regime, há uma visão ideológica de mundo e de sociedade que antepõe o retrocesso ao avanço, o passado ao futuro, antagoniza o saber e a razão. O ataque à educação é, nesses termos, uma consequência lógica; já em si grave, ele, é, fundamentalmente, o indicador de um projeto de sociedade que caminha para o obscurantismo. É a ponta afilada de um iceberg de base larga e profunda.
A serpente, poupada ainda na casca do ovo, começa a rastejar e logo poderá estar picando o liberal incauto.
O fato objetivo é que estamos sob a regência de uma assumida política de desconstituição de qualquer sorte de projeto nacional de desenvolvimento, pois desenvolvimento é impensável em país cujos dirigentes discutem se a Terra é plana, questionam a teoria da evolução, negam o aquecimento global, relegam a plano secundário a preservação ambiental, detestam as riquezas naturais, os índios e os negros, os professores, os estudantes e os artistas (veja-se, a propósito, com que desprezo o governo recebeu a eleição de Chico Buarque de Holanda para o Prêmio Camões, o sucesso de nossos cineastas em Cannes e as mortes de Beth Carvalho e João Gilberto).
O enfrentamento é, pois, a essa visão retrógrada de mundo que chega mesmo a ser anacronicamente anti-iluminsta.
Estas considerações vêm a propósito do Manifesto “Ciência, Tecnologia e Inovação em Estado de Alerta”, assinado por dez ex-ministros de Ciência e Tecnologia, representando todos os governos da restauração democrática, de Fernando Collor a Dilma Rousseff, que se reuniram no último dia 1º na COPPE (Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa em Engenharia), na simbólica e maltratada Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Os ex-ministros denunciam a desconstituição do Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia, com o esvaziamento do CNPq, da CAPES e da FINEP, o contingenciamento dos fundos de financiamento que compõem o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – FNDCT, os cortes que atingem os Institutos de Pesquisa e as Organizações Sociais vinculadas ao Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovação, comprometendo sua produção. Observam que “[…] o Brasil precisa avançar a uma velocidade superior à da fronteira do conhecimento, sob pena de termos, na melhor das hipóteses, uma estagnação cademic”.
Mas, se precisamos avançar, a política do governo que aí está impõe o atraso. E, até aqui, ela está ditando as regras.
A resistência à consolidação do atraso, porém, pede forças para além dos limites da vida universitária e cobra alianças inclusive com o empresariado, principalmente com aquele mais diretamente ligado ao desenvolvimento tecnológico e à inovação.
No mundo contemporâneo, não há exemplo de país com as características do Brasil em termos geográficos, de recursos naturais, demográficos e culturais, que tenha se desenvolvido sem uma capacidade industrial compatível com suas necessidades. Mas o inverso é igualmente verdadeiro: não há desenvolvimento industrial sem desenvolvimento tecnológico e inovação, que depende de desenvolvimento científico, que, por sua vez, depende do saber cademic, da qualidade da educação (desde o ensino médio) do ensino e da pesquisa em nossas universidades.
Essa resistência, todavia, dependerá, fundamentalmente, do encontro da Academia com a sociedade.
Um abraço saudoso para Paulo Henrique Amorim. Vai fazer falta.