Dante D’Aquino: Macunaíma, o herói sem nenhum caráter

O advogado criminalista Dante D’Aquino, de Curitiba, compara o procurador Deltan Dallagnol a Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, personagem do escritor Mário de Andrade.

“Quem dera se os heróis sem nenhum caráter de hoje tivessem a preguiça como pecado, tal qual no seu original”, desculpa-se o articulista com o autor logo no primeiro parágrafo.

Macunaíma, o herói sem nenhum caráter

Dante D’Aquino*

“Vamos organizar congressos e eventos e lucrar, ok?”

Mário de Andrade aceite minhas desculpas. Jamais tive a intenção de reduzir a importância de sua obra, fazendo tão mesquinha comparação. Quem dera se os heróis sem nenhum caráter de hoje tivessem a preguiça como pecado, tal qual no seu original. A esperteza do malandro, a ginga do larápio, o balanço do astuto que sabe onde e como dar uma pedalada na lei, esses, enfim, viraram crianças perto do que vem sendo revelado pela Folha e pelo The intercept.

A hipocrisia do discurso cristão moralizante, que prega a ética (aos outros) nas relações privadas e públicas, não resiste a uma fresta na porta. Bastou entrar uma nesga de luz no cômodo escuro onde se passavam os diálogos íntimos, que o purismo cristão do bom moço deu lugar a um azedo e insuportável cheiro de enxofre, que mais se assemelha àquele exalado nos processos criminais que redundaram em condenações na própria Justiça Federal.

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Eu vejo, eu ouço!

Eu também. Vejo um ocupante de cargo público, custeado com o dinheiro público oriundo de impostos, beneficiário de um dos três maiores salários públicos do país, articular uma organização empresária em nome de familiar laranja para “lucrar”! Afinal, “É um bom jeito de aproveitar nosso networking e visibilidade…”

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Como assim aproveitar a visibilidade? Então era pra isso toda pirotecnia das operações? Todos os informes dados à imprensa? Todos os vazamentos seletivos antecipados? Todas as coletivas convocadas? Era para ganhar “visibilidade” e “lucrar”, obter proveito pessoal? O cidadão, ao fazer concurso público para o MPF ou qualquer outro cargo público que exija dedicação exclusiva, abre mão de lucrar, na data de sua investidura no cargo, diz a Constituição. Ou não?

Você sabe o que significa 20k, 30k, 400k? Talvez sim. Mas o usuário do transporte público, provavelmente não. O padeiro, o garçom, o motorista, e a maior parte da sociedade – não sabem. Mas o procurador da república, claro, está familiarizado com a linguagem da grana, que vem da bolsa de valores. Afinal, 30 mil reais é uma boa remuneração por uma palestra! Nossa, vamos faturar 30k, 20k, 50k! E a autocrítica: “esse processo já passou de um aprova de 100 metros rasos para se tornar uma maratona”. Ué, não sabia que a remuneração do MPF poderia ser proporcional ao número de processos. Não consta da Constituição essa baliza, bem tampouco da Lei Orgânica do MP. Por qual razão “achar justo” lucrar em palestras para compensar o processo, se o salário do MPF continua sendo pago?

Está insatisfeito com o salário? Gostou de voar em jatinhos fretados para as palestras? exonere-se e prossiga na iniciativa privada. Ou podemos tolerar o ilícito uso de laranjas para “lucrar com a visibilidade” como modo de agir do Ministério Público Federal?

Ao que minhas vistas leem do artigo 37 da Constituição, no exercício da atividade pública, como a exercida pelos procuradores, a moralidade é um dever que deve ser observado rigorosamente, sob pena de ferir a Constituição. E, me desculpem, colocar a esposa de laranja para “lucrar 400k” não é compatível com esse princípio nem à quilômetros de distância.

O que se revela das conversas, é uma pessoa que há muito se deixou levar pelo desejo de lucro fácil. Não é demais lembrar que, além de previsto na Constituição Federal, o princípio da transparência também é uma baliza das condutas do promotor, conforme previsto na Lei orgânica do Ministério Público – a lei complementar 75/93.

Lá está disposto que o membro do Ministério Público deverá zelar pela defesa do patrimônio público, agindo com transparência, ética e moral para defender em suas atuações como Promotor. Essa previsão, que está disposta no artigo 5º de mencionada lei, não parece restar íntegra por quem sugere que a empresa tenha a esposa na frente da administração, “por questão legal”.

Qual questão legal? A proibição de o membro do Ministério Público ser sócio administrador, prevista na lei Orgânica e na Constituição da República? Mas essa proibição, essa “questão legal” não deveria impedir o douto de agir dessa forma? Então essa é a maneira de burlar a lei, colocar a esposa no comando? Ótima sugestão Macunaíma.

Mas então vamos usar a mesma régua que a lava jato usou para os diretores da Odebrecht, OAS, Queiroz Galvão, etc…E aí? Podemos ser justos? Vamos olhar o caso de Fernando Bittar, por exemplo, que foi acusado pela Força Tarefa de Deltan de ser o laranja do Lula no sítio de Atibaia. Lula foi condenado a 12 anos e 11 meses de prisão pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro no processo do sítio. E o Deltan?

A intenção se concretizou? O COAF vai investigar? A Polícia Federal vai instaurar um Inquérito para averiguar, ouvir os envolvidos, intimar as testemunhas, sugerir medidas cautelares? Me preocupa em especial saber se o direito de defesa dos Procuradores citados será preservado, pois, apesar de tudo, não compactuo com a ideia de acusar com base em convicções, mas, sim, e apenas, com fundamento em provas concretas, obtidas dentro de um processo legal hígido.

Vejam a gravidade do que está posto. Se a origem dos valores é ilícita, porquanto a lei proíbe que o membro do Ministério Público transforme as palestras em sua atividade principal em detrimento da função de promotor, e, somado a isso, identifica-se interposta pessoa para o recebimento de valores e gerenciamento do “esquema”, estamos diante de um típica estrutura de lavagem de dinheiro, incriminada pela lei 9.613/98, potencialmente.

Aliás, não preciso nem escrever, pois Deltan já escreveu que: “o uso de familiares para movimentação e a fim de figurarem como proprietários nominais de bens, valores e empresas, merece destaque em separado em razão de sua frequência, ainda que os familiares possam ser enquadrados em outras categorias, como a dos laranjas e testas de ferro. Sob o ponto de vista do criminoso, o uso de pessoa com vínculo familiar, de um lado, apresenta certa desvantagem por haver maior probabilidade de ser foco da atenção, do que outro terceiro (laranja, testa de ferro, fantasma ou ficto), em uma investigação mais ampla ou profunda. (“Lavagem de Dinheiro – Prevenção e Controle Penal”, organizado por Carla Veríssimo De Carli, reunindo 14 outros artigos e que teve a primeira edição publicada em 2010, pela editora Verbo Jurídico, de Porto Alegre.)

Mas final de contas, a esposa seria uma excelente opção para gerenciar os lucrativos negócios de 400k do Procurador e seus amigos, pois “é altamente tentador, pois não demanda maior esforço – quase toda pessoa possui relação com pais, ou filhos, ou irmãos, ou possui um companheiro(a), chama menos a atenção no momento do uso, e apresenta segurança, decorrente do vínculo de confiança, tanto sob o prisma econômico como de manutenção do segredo” (“Lavagem de Dinheiro – Prevenção e Controle Penal”).

A lógica segundo a qual as palestras seriam para “promover cidadania e combate à corrupção”, não resiste ao interesse de “lucrar” e “aproveitar a visibilidade”. Não há promoção de cidadania quando se procura priorizar o proveito econômico pessoal, sobretudo no caso de um agente público, que recebe um dos maiores salário para atuar, e tese, de forma distante de interesses financeiros, mas no caso concreto, movido por eles.

“Quem nunca comeu mel, quando come se labuza”. Essa foi a frase de Roberto Jeferson, ao inaugurar, em 2005, as delações no país de Macunaíma. Referia-se ao PT. Deltan pelo visto adorou lucrar 30k (30 mil reais) com uma fala de 1 hora e ainda exigir hospedagem para si, esposa e filhos em resort de luxo no nordeste do país. É a inversão completa dos papéis. Agora o importante é ser palestrante, pois assim se pode “aproveitar a visibilidade”. A atuação de membro do Ministério Público já ficou em segundo plano há muito tempo. Afinal, essa grana já está garantida, portanto, como o lucro é o objetivo, vamos dar um jeito e colocar a esposa, a irmã, vamos levar os filhos para “aproveitar” ao máximo esse momento nababesco. Viva Macunaíma! “É para promover a cidadania e o combate à corrupção!”

*Dante D’Aquino é advogado em Curitiba, mestre em Direito Penal Empresarial e professor de Processo Penal.