Cappelli: Quando a irracionalidade faz sentido

O jornalista Ricardo Cappelli afirma que colocar um capitão rastaquera [Bolsonaro] no leme [do país] é certeza de uma tragédia. “Haddad tenta voltar ao passado da era Lula. O fascista vai mais longe. Quer voltar 50 anos”, escreve.

QUANDO A IRRACIONALIDADE FAZ SENTIDO

Ricardo Cappelli*

Quando meu mundo desaba e o futuro vira um mar de incertezas, talvez a ilusão de voltar para o passado faça todo sentido. Alguns acharam Bolsonaro louco quando ele disse que queria fazer o Brasil voltar 40, 50 anos atrás.

A esquerda tripudiou associando-o ao retrocesso. Não se enganem, é isso que boa parte do povo deseja.

Faz algum sentido milhares de desempregados e gente passando fome no momento em que a humanidade saboreia um avanço tecnológico sem precedentes? Qual a explicação racional para alguns poucos concentrarem mais recursos que 99% da população?

Economia

Que emprego eu terei no futuro? Máquinas vão substituir costureiras e até… advogados? Teremos fábricas sem gente? Carros sem motoristas? Lojas do Mcdonald’s sem funcionários? Onde meus filhos irão trabalhar?

O que é real? O que é virtual é real ou imaginário? Fake News? O que é verdade se cada um vê seu fato da sua forma? Como manter códigos e acordos sociais neste ambiente? Instituições representam o todo ou parte?

Para onde vai à família? Não é mais homem, mulher e filhos? Mudou? Existem possibilidades de gêneros não binários? Como assim? E tudo que aprendi durante toda minha vida? Jogo no lixo? Cadê meu chão?!?

A insegurança é o vetor implantado pela lógica do capital neste início do século XXI na vida das pessoas. Não sabemos para onde vamos, com quem vamos ou mesmo se vamos para algum lugar. Viramos todos “vagabundos” correndo pela sobrevivência atrás de um capital apátrida em permanente movimento.

Não era muito melhor ir ao Maracanã ou ao Pacaembu no início da década de 80? Nossos craques estavam no Brasil. Ingressos baratos, estádios lotados. A violência nem de perto era o que é hoje. “O que fizeram com meu Brasil?”

“Quem fez isso? Quem me trouxe para um futuro de caos e depressão?”. Na impossibilidade de conseguir compreender racionalmente o que está acontecendo, encontrar um inimigo externo “culpado” é sempre eficiente. “Foram eles! Os Vermelhos! Vamos eliminá-los e voltaremos felizes 40 anos no tempo!”

O que é Trump se não a contestação da ordem neoliberal pela direita? A crítica ao identitarismo multiculturalista do Partido Democrata? Ele não está voltando ao protecionismo tão criticado? Oi? Alguém falou “voltando”?

“Na época da ditadura era melhor”. Projetar o passado no futuro é sempre reconfortante em momentos de crise aguda. A memória é sempre mais generosa com os momentos de alegria. Quando o sólido desmancha a ansiedade pelo “chão de volta” bate no teto.

A sociedade brasileira parece estar entrando numa viagem psicodélica impossível. Não existe máquina do tempo. Os ponteiros continuarão a girar para frente. Colocar um capitão rastaquera no leme é certeza de uma tragédia.

Haddad tenta voltar ao passado da era Lula. O fascista vai mais longe. Quer voltar 50 anos. Se o futuro é sombrio, quanto mais distante dele, melhor.

São muitos os elementos que explicam a atual catarse social que estamos vivenciando. Uma gama de fatores, conjunturais, históricos, econômicos, sociais e políticos se juntaram numa tempestade perfeita.

Futuro ou passado? Que futuro? De uma forma ou de outra, esquerda e direita tradicional parecem incapazes – ou carecem de força – para responder adequadamente aos desafios que estão colocados neste terceiro milênio.

Quando minhas certezas derretem a irracionalidade parece fazer sentido. Quando o capital irresponsável resolve brincar de Deus o cheiro de guerra começa a contaminar o ar. Tempos sombrios.

*Ricardo Cappelli é jornalista e secretário de estado do Maranhão, cujo governo representa em Brasília. Foi presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes) na gestão 1997-1999.