As esquerdas na hora da travessia

Para o ex-ministro Roberto Amaral, as forças democráticas não lograrão avanços se não recuperarem a capacidade de mobilização popular. “Como apostar todas as fichas em uma Instituição sabidamente inconfiável?”, questiona.

As esquerdas na hora da travessia

Roberto Amaral*

Transitar da tragédia grega, do desastre anunciado, independentemente da vontade dos atores, para a ação coletiva orientada, pressupõe organização, liderança e comando. Essa é a forma de evitar que o acaso, o aleatório, seja o instrumento decisivo de “mudança do rumo da História”, como observou Wanderley Guilherme dos Santos em entrevista que precisa ser pensada, como tudo o que diz e escreve (Valor, 2/3/2018).

Substituir a expectativa do acaso, tão presente em nossa História, pela ação coletiva consciente cobra reflexão, mãe da teoria que orienta a boa práxis, ensinava Lênin. Uma boa teoria resultaria da compreensão do caráter da crise e, nela, do papel de seus personagens.

Nesse ponto, sobreleva o papel do homem (e, consequentemente, das organizações políticas) na História, tantas vezes determinando/alterando seu rumo, como Vargas em 1954 e Brizola, em 1961, para ficarmos em casa. Muitas vezes os povos e seus líderes são chamados a definir-se diante do Rubicão. No caso presente, o passo decisivo, sem volta, trata-se do enfrentamento e derrota do regime de exceção, em seu momento policial-judicial mais agudo

Economia

A mera identificação/existência de condições objetivas – em nosso caso, a crise político-econômica caminhando para um desfecho institucional imprevísivel – não é suficiente para ensejar a ação concertada, pois condições favoráveis exigem ainda o concurso contemporâneo das condições subjetivas, dependentes de mobilizações político-ideológicas.

Essas condições existem: ilustram-nas a rejeição popular ao atual governo de fato. Existiam igualmente durante a crise de 1954, que levou Getúlio Vargas ao suicídio. Mas a simples presença de condições favoráveis ainda não constitui fator decisivo para a irrupção social. É preciso a gota d’água, de difícil previsibilidade.

Em 1954, as massas populares não se levantaram em defesa do mandato e da vida do presidente, fenômeno que analistas não bovaristas identificam como recorrente no atual drama brasileiro. Isso porque o povo raramente vai às ruas, espontaneamente: em regra responde a um chamamento. E essa convocação, para ser atendida, exige organização apropriada aos objetivos perseguidos, liderança, carisma, comando e palavra de ordem adequados.

Que orientação, porém, poderiam as massas aguardar de um sindicalismo então dependente do assistencialismo do Ministério do Trabalho? Que comando poderiam os trabalhadores esperar de um Partido Comunista associado às forças reacionárias na conspiração contra Vargas, acusado que era, pela direita, de corrupto e subversivo (tratando-se de um governo simplesmente nacional-popular), e denunciado pelos comunistas como “lacaio do imperialismo” (Voz Operária, agosto de 1954. Cf.documentosrevelados.com.br)?

Não se ignora a possibilidade de irrupção espontânea, quando o povo sai sem aguardar comando, mas é justo confiar que nossos estrategistas não apostem no voluntarismo das massas. As irrupções ditas espontâneas (como medir a estimulação subjetiva?) são ondas que nascem fracas, morrendo antes de chegar à fímbria da praia.

Foi essa a reação popular no Rio de Janeiro com o suicídio inesperado de Vargas. Sem atender a chamamentos, sem liderança a seguir, sem comando, órfão de qualquer sorte de organização, o povo-massa foi às ruas, extravasando dor e ódio, numa violência catártica e desesperada, como formigueiro que abandona o ninho e se dispersa sem rumo, perdido, à mercê de seus predadores

Na ausência de um inimigo concreto, de um projeto objetivo, de um ‘que fazer’, queimou os caminhões de entrega dos jornais que ao seu ver haviam promovido, não exatamente o golpe (contra o qual não se levantara), mas a morte do líder.

Era, majoritariamente, uma reação mais emocional do que política e, assim condenada em sua limitação. Ao final da jornada anárquica, sem liderança, sem palavra de ordem, retornaram os populares e os militantes às suas casas; no dia seguinte, aos seus postos de trabalho. E o cotidiano se impôs.

Atribui-se a Lula a observação segundo a qual, se a massa que acorreu aos protestos no pranto de sua morte tivesse saído às ruas em defesa do seu mandato, Getúlio não teria sido deposto nem optado pelo grande gesto. Assim fosse, as massas trabalhadoras não sairiam derrotadas.

Essa observação pode ser aplicada, mutatis mutandis, à crise que entre nós se arrasta, mais visivelmente, desde 2013. O impeachment de Dilma não se teria consumado se as forças populares (partidos, sindicatos, movimentos sociais etc.) dispusessem de condições objetivas de mobilização popular no nível em que as características da luta exigiam.

O mesmo se afirma relativamente ao quadro de nossos dias, que Walter Sorrentino, dirigente comunista brasileiro, denomina de “paralisia da reação popular”.

Sobre Lula, poder-se-á dizer que foi condenado (e poderá ser preso) e está ameaçado de não poder disputar as eleições nas quais é o favorito, porque as ruas permaneceram vazias quando maiores eram/são as ameaças totalitárias à sua liberdade, aos seus direitos cidadãos; quando, em síntese, a repressão policial-judiciária mais avança, anunciando, ao fim e ao cabo, a cassação da soberania popular.

Em mais uma ação golpista de processo golpista in continnuum, está sendo retirado do povo, ainda silente, o direito de votar no candidato de sua escolha. Dispensada, porque ainda não necessária, a truculência da japona, somos submetidos à sofisticada violência da toga.

A democracia não se mede pela existência de judiciários nem pela mera obediência ao formalismo legal: o poder se presta à promoção da injustiça e a lei não é necessariamente democrática nem necessariamente busca a justice, ela simplesmente reproduz os valores e os interesses do poder que a editou.

Não por acaso, o Poder Judiciário, aquele, porque desapartado da soberania popular, é o que mais encarna os interesses e o autoritarismo da classe dominante. Desde o STF e descendo até o piso, tem sido o Poder Judiciário, como instituição, a guarda pretoriana de todas as legislações autoritárias de todas as nossas ditaduras.

Não é admissível supor que os estrategistas da resistência democrática ignorassem essa obviedade, mas é verdade que dirigimos nossa luta mediante a tática de pressão sobre o Poder Judiciário. Não funcionou, até aqui.

Em sua entrevista ao Valor, Wanderley Guilherme põe em destaque esse erro crasso das esquerdas, quando afirma: “Lula e seus assessores mais próximos estavam movidos pela expectativa de sucesso na via judicial pela mobilização, mas a rua tem sido irrelevante para o Judiciário”.

Por obra e graça de um erro tático de repercussões estratégicas outorgamos ao Poder Judiciário, quase legitimando-o, as condições de decidir sobre a liberdade de Lula, decidindo, por consequência, sobre os destinos do projeto eleitoral e o futuro do país, destruindo os marcos da democracia representativa (que se assenta no voto popular) e criando condições para a prorrogação do regime de exceção de cuja implantação ele, o Judiciário é um dos principais agentes.

Como apostar todas as fichas em uma Instituição sabidamente inconfiável?

Não há alternativa para a crise brasileira fora do que nos resta de ordem constitucional; nenhum avanço lograrão as forças democráticas se não recuperarem a capacidade de mobilização popular, e povo na rua significaca, igualmente, o fortalecimento da democracia.

A grande meta, hoje, tática, é assegurar as eleições de 2018 segundo as regras atuais, ou seja, sem os casuísmos que deformam o processo eleitoral em proveito do conservadorismo, e sem os golpes de mão com os quais a classe dominante, derrotada e, como sempre, inconformada com os resultados, intenta quebrar as regras do jogo. É o que está em risco. Nisso, a casa-grande brasileira é useira e vezeira, como mostram os golpes implantados após as derrotas de 1950 (eleição de Getúlio), 1955 (eleição de JK), 1961 (posse de Jânio) e, finalmente, 2014, eleição de Dilma Rousseff. Se assim é e sempre foi, não há porque supor que a casa grande deixaria/deixará de assim agir.

O rubicão está aí, à nossa espera, e não há alternativa senão concluir a travessia; resistir e avançar é um imperativo histórico. Para essa travessia, para as forças populares sem as tropas de César, impõe-se, superando as bravatas retóricas, a arma da mobilização popular, que não prosperará sem a unidade tático-programática (para além do drama eleitoral) das forças de populares e de esquerda.

O povo-massa certamente voltará a ser agente do processo histórico se as esquerdas compreenderem a importância tática do processo eleitoral, a caminho do projeto estratégico de disputa da hegemonia.

Dividida mediante diversas postulações eleitorais, cuja legitimidade ninguém pode discutir, a esquerda e a centro-esquerda devem unir-se na ação conjugada de politização das massas e preparação para os desafios que se estão maquinando nas entranhas do pacto de dominação que em 2014 tomou o poder de assalto.

Só assim, mobilizado pela politização, fortalecido pela organização (que inclui os partidos mas que extravasam seus limites) o povo poderá assegurar eleições livres, defender os direitos de Lula e sua candidatura e, por conclusão, impedir a continuidade do regime antipopular e antinacional e dar curso ao projeto de desenvolvimento nacional autônomo.

>*Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia