Fidel e o ranço da mídia no Brasil

fidel_castro_milton_alvesO ativista político Milton Alves, que morou em Cuba no início dos anos 90, em artigo especial, analisa o editorial do ex-jornal Gazeta do Povo do último dia 28 de novembro. Segundo o articulista, o blog de direita comenta a morte de Fidel Castro através de um olhar visceralmente anticomunista, como nos tempos da chamada ‘guerra fria’, uma narrativa rançosa, muito clichê e pouca informação sobre a vida e a trajetória da multifacetada personalidade do líder histórico da revolução cubana.

Fidel e o ranço da Gazeta do Povo

Por Milton Alves*

O editorial desta segunda-feira (28) da Gazeta do Povo sobre a morte de Fidel Castro (e seu legado) foi marcado por um primitivo anticomunismo, um amontoado de surrados clichês do período da chamada ‘guerra fria’, uma linguagem rançosa, muito discurso e pouca informação. Os jornais conservadores como o Estado de São Paulo e o Globo adotaram uma linha editorial mais multifacetada sobre o personagem histórico.

No entanto, o editorial da Gazeta preferiu carregar nas tintas para demonizar o líder histórico da revolução cubana. Um dos trechos do artigo afirma que Fidel foi o mais sanguinário ditador das Américas, uma afirmação sem base na realidade. Ainda mais num continente com tiranos como Pinochet no Chile, Videla na Argentina, Papa Doc no Haiti, rematados genocidas.

Em Cuba ocorreu uma autêntica revolução popular, apoiada num forte movimento social nas cidades e uma guerrilha que catalisou a onda insurrecional contra a tirania de Batista. A revolução teve amplo apoio popular e até de setores da classe dominante cubana, setores da burguesia foram favoráveis ao processo no seu início.

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A repressão aos inimigos da revolução foi seletiva, alvos definidos, notórios assassinos e esbirros policiais da época do regime de Batista. O tão propalado ‘paredon’ foi pontual, o período de justiça sumária foi curto. Nada comparado à matança ocorrida no Chile e na Argentina. Em Cuba, nunca houve uma vaga repressiva de massa. Nunca houve um ‘estado policial’, como em alguns países do leste europeu, tipo Romênia de Ceaucescu, Albânia de Enver Hoxja ou RDA de Honecker. Nem as aberrações stalinistas do Gulag e/ou dos campos de reeducação(eliminação) de Pol Pot no Camboja.

Também em Cuba, sob o regime socialista, nunca ocorreu uma revolta popular como aconteceu na Hungria em 1956 ou na Polônia nos anos 80, obrigando o exército e as forças de segurança agirem contra as massas. Houve, sim, momentos de extrema tensão como o “êxodo de Mariel”, em 1980, que levou cerca de 25 mil cubanos para a Flórida. E a fuga dos “balseros”, nos meados dos anos 90, no auge das extremas privações materiais do “período especial”. Mesmo durante estes episódios, a direção estatal e o Partido Comunista atuaram no sentido da disputa política/ideológica e da mobilização de apoio popular.

Além disso, o país viveu todos esses anos sob um cerco promovido pela maior potência mundial e sofreu agressões de diversos tipos: econômica (embargo) e militar, como a fracassada operação de invasão na Baía dos Porcos em 1961. E, para refrescar a memória do editorialista da Gazeta, o próprio Fidel Castro foi alvo de centenas de tentativas de assassinatos, fato assumido pela CIA.

Resta a disputa sobre a narrativa da violação dos direitos humanos na ilha caribenha, um debate ainda marcado pelo maniqueísmo e superficialidade. Em Cuba, para o bem ou para mal, as questões sempre merecem um olhar dialético. Neste terreno, há problemas e há avanços. Porém, a minúscula oposição interna opera com relativa liberdade, apesar de atuar, quase sempre, como ‘longa manus’ do império localizado a cem milhas de Havana.

Uma visão mais panorâmica da questão, indica a necessidade de prestarmos mais atenção para o diálogo constante e proveitoso entre o estado cubano e a igreja católica, uma instituição organizada em todo território nacional, com uma rede de estabelecimentos e uma imprensa própria. A Igreja Cubana, como o Partido Comunista e as Forças Armadas, é uma organização capilarizada e hierarquizada, certamente joga um papel importante no desenvolvimento do xadrez cubano.

É inegável o reconhecimento global do papel e da liderança de Fidel Castro em todo processo atribulado da trajetória da revolução, seu alcance mundial, as peculiaridades -, e seus erros e acertos.

A comoção popular verificada no país nestes dias é genuína e profunda. A figura de Fidel encarna em Cuba os valores do patriotismo, do internacionalismo e do igualitarismo socialista. Para a imensa maioria dos cubanos, ele foi um gigante em vida que ousou construir uma sociedade mais justa. Um herói, sem estátuas e em culto à personalidade.

Nem santo nem demônio! Apenas um revolucionário de verdade. O último grande homem forjado na roda da História do século XX.

Ao reduzir uma personalidade complexa e multifacetada, como a de Fidel, a condição de ditador, apenas revela o tamanho e o caráter de seus detratores.

Quanto ao futuro de Cuba, mais uma vez, recomendo o exercício da dialética e a espera dos inevitáveis caprichos da História.

*Milton Alves é ativista social no Paraná. Morou entre Cuba entre 1990 e 1991. É autor do blog www.miltonalves.com.

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