Maldito Foucault! As prisões brasileiras são campos de concentração para os pobres

por Ivana Bentes, no Mídia Ninja

O Estado brasileiro “terceirizou” a barbárie, entregando a gestão dos presídios às facções e consentindo que os agentes do Estado matem e deixem morrer.

O ser humano é descartável no Brasil. Como modess usado ou Bombril (Mano Brown. Diário de Um Detento)

“Quem matou abriu o peito, tirou o coração, cortou as pernas e os braços. Furaram os olhos dele. A cabeça parecia uma máscara, um bicho atropelado. Sabe quando você pega a cabeça de um boi? Por que essa crueldade que fizeram com ele?”

A descrição do parente de um dos 93 presidiários assassinados neste início de 2017 em três penitenciárias do norte do país (em Manaus e Boa Vista) não é apenas um relato da barbárie e da demonstração de poder das facções criminosas que dominam e governam as prisões brasileiras.

A massa de corpos em pedaços, as cabeças degoladas, os corações arrancados, as mãos e pernas decepadas produzem uma imagem informe e anônima, mas extremamente eficaz de desumanização radical dos usuários do sistema penitenciário brasileiro, só comparáveis, na sua abjeção e monstruosidade, às imagens dos campos de extermínio.

Economia

As prisões no Brasil e em parte da América Latina não têm nada da racionalidade disciplinar e clean das séries de TV norte-americanas, com suas “prisões modelo”. Aqui, as prisões se assemelham a campos de concentração para miseráveis e pobres, onde se faz a gestão do “excedente”, dos que se tornaram inassimiláveis pelo mercado, como descreve Zygmunt Bauman no seu livro Globalização: as consequências humanas. A prisão vista como uma alternativa aos que foram “inabilitados” para o emprego. O exército de reserva de um necrocapitalismo global.

O excedente

E o que se faz com o “excedente” (desempregados, marginalizados, pobres e negros, migrantes) em um sistema capitalista? Não se sabem os nomes, não se veem os rostos desses homens descartáveis que são mortos nos confrontos com a polícia nas favelas, são executados nas ruas, morrem nas filas de espera dos hospitais, são chacinados. São os mesmos homens!

Pouco importa suas histórias de vida, que crime cometeram, pouco importa que mais da metade desses homens seja de pobres e negros com menos de 30 anos de idade. Pouco importa que estejam ali efeito de uma política de criminalização das drogas e da pobreza que, diante do seu próprio fracasso estruturante, produz mais crime e encarceramento massivo.

Pouco importa que a maioria dos chacinados tenha cometido delitos considerados de menor potencial (roubos, furtos, falsificação de documentos, porte de drogas, etc.). Pouco importa que tenham que se ‘filiar’ a uma facção dentro da prisão para sobreviverem porque o Estado não garante suas vidas.

Os presos que deveriam ser “disciplinados”, “ressocializados” são simplesmente incorporados a um contingente populacional que abarrota as prisões de homens que foram “selecionados” para se “deixar morrer”.

Todas essas imagens de assassinatos espetaculares e corpos dilacerados para exposição pública e midiática alimentam e produzem efeitos, ações e discursos que igualam o Estado Brasileiro e parte dos “cidadãos de bem” às organizações criminosas, quando clamam por e apoiam a barbárie nos presídios.

O “cidadão de bem” que goza com esses suplícios na carne considera que os presos rivalizam com os trabalhadores em recursos públicos, são “privilegiados” pelos defensores dos direitos humanos, “escolheram” o caminho da criminalidade ou são portadores de uma perversidade congênita e devem pagar com a vida, e com sofrimentos equivalentes, o mal causado.

Esse ressentimento e ódio vingador infinitos produzem um desejo de “fazer morrer”, o gozo com os linchamentos espetacularizados pelas facções ou “deixar morrer”, ver apodrecer nas prisões. A criminalidade é reduzida a uma escolha discricionária entre o certo e o errado e imputada totalmente aos indivíduos.

“Maldito Foucault!” foi um dos comentários lidos nas redes sociais que definiam o autor do mais importante estudo sobre o sistema prisional moderno como um “esquerdopata”, justamente por descrever esse bio poder e o sistema penal como “um sistema concebido como um instrumento para gerir diferencialmente as ilegalidades, não para suprimi-las”.

Fato é que essa “pena de morte”, defendida socialmente por muitos, já está em curso no Brasil, de modo aberrante e inconstitucional, quando os internos do sistema penitenciário são amontoados em prisões superlotadas que os animalizam, barbarizam, desumanizam.

O Estado brasileiro não apenas “terceirizou” a barbárie, entregando a gestão dos presos e de seus corpos encarcerados à morte consentida e ao assassinato “entre eles”. Toda essa necropolítica tem a participação ativa de seus dirigentes, agentes penitenciários, podendo chegar ao uso da força militar, como na intervenção policial no Carandiru que matou 111 detentos em São Paulo em 1992 e cujos 74 policiais acusados do massacre podem ser absolvidos pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.

A facção Estado

Dois paradigmas se rompem aí. Os gestores das prisões modernas que deveriam se balizar pela eficiência e sobriedade de meios disciplinadores e ressocializadores, agindo com humanidade, se rebaixam ao nível dos piores criminosos e passam a ser tão violentos quanto os que deveriam socializar. Produzindo um Estado-facção.

Não se resguarda nem a humanidade dos presos e tão pouco a humanidade dos que exercem o poder. Trata-se de uma corrente de bestialização, cuja barbárie encontra eco nas vozes de muitos “cidadãos de bem” que fazem das redes sociais e comentários do noticiário um confessionário público dos mais abjetos desejos, reforçando a necro política e a tanatopolítica, os que governam gerindo mortes.

O “cidadão de bem”, parlamentares da bancada da bala, e agentes públicos passam a pedir condenações mais severas ainda, pena de morte, mais encarceramento, alimentam o estigma penal, querem mais prisões de segurança máxima, redução da maioridade penal para se encarcerar e punir crianças, tolerância zero, concordância com tortura e castigo e ao final a transferência da responsabilidade do Estado para as empresas privadas, fechando-se o ciclo do preso-mercadoria e da gestão das vidas.

A linha de montagem passaria assim do campo de extermínio para a “prisão-fábrica”. Seguindo o modelo das prisões norte-americanas, disciplinares e clean, tornadas negócios milionários de empresas que frequentam a bolsa de valores, especulando contra a vida.

Quanto mais encarceramento massivo, mais lucros exponenciais. Mas basta olhar os sistemas prisionais privatizados no Brasil, como o de Manaus, para entendermos que aqui se criou uma nova aberração, com a maximização da lucratividade do próprio campo de extermínio.

Prisão e escravidão

O Brasil foi o primeiro país da América Latina a ter uma penitenciária, a Casa de Correção da Corte, em 1852 e foi o último país da América a abolir a escravidão, em 1888. E ao fim e ao cabo produziu uma combinação atroz entre diferentes sistemas ignóbeis.

O regime prisional brasileiro, que deveria romper o teatro das execuções públicas e os suplícios, incorporou no seu sistema o regime de escravidão, punindo com açoites, infligindo torturas e castigos, trabalho forçado aos detentos, não mais da forma espetacular como faziam os soberanos, em praça pública, mas de forma disciplinar e sobre o manto da racionalidade e a pretexto de adestrar, normatizar e produzir corpos dóceis e ressocializados.

Poderíamos dizer que o sistema prisional brasileiro “falhou” duplamente: terceirizou os suplícios para as facções, onde os presos matam entre si em um espetáculo mórbido, e criou um sistema interno e “invisível” de torturas e ilegalidades na gestão das vidas aprisionadas.

No seu extraordinário estudo sobre a passagem dos regimes de soberania para o sistema disciplinar, Michel Foucault, em Vigiar e Punir, descreve o espetacular teatro das execuções e suplícios públicos praticados pelos regimes de soberania em que os soberanos arbitravam sobre a vida e a morte, e os castigos eram a manifestação física da vingança do rei e dos soberanos sobre seus súditos. A soberania era o poder de matar.

Com a passagem dos regimes de soberania para os regimes disciplinares -o sistema prisional como modelo da fábrica, da escola, do hospital- emerge o que Foucault nomeia de biopoder, um poder de “fazer viver” e de “deixar morrer”.

Mas não se trata de fazer viver ou de deixar morrer de qualquer jeito ou qualquer um. O biopoder é seletivo e produz uma necropolítica ou uma tanatopolítica, como propõe Giorgio Agamben, cujo objetivo é sistematicamente gerir e eliminar os “ineptos”, os “inutilizáveis”, os “incorrigíveis”, todo um exército de reserva matável ou reduzível dentro do capitalismo. Esse é o controle biopolítico na sua nova racionalidade.

Exitoso fracasso

As prisões brasileiras fracassaram ou são ao fim e ao cabo a mais completa tradução do êxito no controle e gestão das vidas? “Fazer viver” com o mínimo (todo o desmonte dos direitos trabalhistas da necropolítica de Michel Temer) e “deixar morrer” os homens descartáveis. Um sistema que gere ilegalismos e supressão de direitos.

Mesmo no sistema de soberania, em que a população urrava e aplaudia os suplícios em praça pública, em alguns momentos, o poder de morte do soberano lhes parecia excessivo e não são poucas as revoltas contra o despotismo dos reis que faziam morrer. Principalmente quando se confronta o poder excessivo dos soberanos e do biopoder com as formas de limitar e diminuir a potência dos indivíduos e coletivos.

Longe de romantizar as facções criminosas e seu poder despótico, que mimetiza o Estado e é mimetizado por este, os direitos humanos buscam uma compreensão mais ampla de todo um sistema que produz bestializados: criminosos, facções, policias e limita as potências.

O combate ao assassinato e massacre de presos no Brasil não é apenas um drama de indivíduos, uma luta contra o aniquilamento real que é a prisão e a morte desses homens, é um esforço para conter a barbárie de um sistema de descarte em massa. Mas como criar empatia e sair dos clichês do ciclo infernal da favela-prisão, da pobreza-crime?

Em Diário de um Detento, clipe dos Racionais MC’s, premiado pela MTV em 1998, Mano Brown nos coloca na pele de um presidiário do Carandiru produzindo um sentimento de proximidade e empatia que só a música, a arte, o cinema, talvez consigam produzir:

“O ser humano é descartável no Brasil. Como modess usado ou bombril. Cadeia? Guarda o que o sistema não quis. Esconde o que a novela não diz. Ratatatá! Sangue jorra como água. Do ouvido, da boca e nariz. O Senhor é meu pastor… perdoe o que seu filho fez. Morreu de bruços no salmo 23, sem padre, sem repórter, sem arma, sem socorro. Vai pegar HIV na boca do cachorro. Cadáveres no poço, no pátio interno. Adolf Hitler sorri no inferno!”

Existe todo uma cinematografia desse “ciclo infernal” que conecta as favelas, a economia capitalista e as prisões. Temos as imagens hiperbólicas do filme Cidade de Deus, que reforça estereótipos dessa relação entre crime e pobreza, como se os pobres fossem “assassinos por natureza”.

Temos os filmes do cineasta Hector Babenco sobre o sistema penitenciário brasileiro, destino final de parte de uma população despotencizalizada, mas que produz sujeitos, narrativas, subjetividades: Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (1977), Pixote, A Lei do Mais Fraco (1981), O Beijo da Mulher Aranha (1985) até chegar a Carandiru, em 2003, que também procura humanizar os homens bestializados.

Mas talvez sejam os documentários que melhor expressem e deem visibilidade ao avesso e as entranhas do sistema penal e prisional brasileiro. Destaco os dois documentários de Maria Augusta Ramos, Justiça (2004), depoimentos de detentos a juízes que revelam tudo o que há de discricionário e mesmo arbitrário nas sentenças emitidas pelos juízes e os tipos de pena e Juízo (2007), um filme sobre o julgamento de menores infratores, encenado por jovens com o mesmo perfil dos menores. São embates discursivos e narrativos que destroem certezas e clichês.

Um dos filmes mais extraordinários sobre as prisões brasileiras se chama O Prisioneiro da Grande de Ferro (2003), de Paulo Sacramento, que dá uma última volta no parafuso ao nos conduzir numa imersão por dentro do presídio do Carandiru, meses antes de parte dos pavilhões do complexo prisional serem implodidos. No filme, são os próprios detentos que tomam a câmera e filmam, tornados “produtores de discurso”, produtores de imagens, de subjetividade, de experiências. Um cinema na primeira pessoa do singular, impactante.

Percebemos que os presídios são organismos vivos, uma vida e mundo a parte que se inventa a partir do “nada” de existência e do “deixar morrer” do sistema prisional. A vida se apega e se potencializa no campo de concentração, no campo de extermínio chamado presídio: sociabilidade, alegrias do futebol, sexo, cultos, precariedade material e existencial, condições sub-humanas, superlotação, falta de médicos e atendimento, comida azeda, música, rap, pagode, produção de armas e facões, uso de bebidas e drogas. Esses auto-retratos ganham uma densidade e poética impactante. Pois os mais privados de liberdade criam um sistema de autogoverno e uma outra liberdade dentro da prisão à revelia do Estado e da sociedade que não se interessam por aqueles que decidiram “deixar morrer”.

Não é espantoso que as rebeliões e massacres que estamos vendo ressuscitem o fantasma do Carandiru, com todo seu horror e simbologia. A imagem inicial de O Prisioneiro da Grade de Ferro é justamente a projeção de traz para frente das imagens da implosão e ressurreição do complexo penitenciário. Da nuvem de fumaça vemos se reerguer a arquitetura monumental da prisão. Cada massacre e chacina nos presídios brasileiros recolocam de pé o Carandiru, esse monumento ao horror e do “fracasso exitoso” do sistema prisional.

Em 2010 entrei pela primeira fez em um presídio, para um curso de audiovisual proposto pela CUFA (Central Única das Favelas), a convite de Celso Athayde e com a participação do diretor Rafael Dragaud. Um projeto arriscado e mirabolante de produzir um filme, do roteiro a filmagem, com detentos de diferentes facções nos presídios de segurança máxima do complexo penitenciário Esmeraldino Bandeira, e Bangu 3, Bangu 4 e Bangu 6, no Rio de Janeiro.

A diretora da escola dos presídios informou logo de cara que não poderíamos entrar com vídeos que fizessem referência a violência e a sexo. Tudo bem, poderia exibir Bambi, de Walt Disney que as questões iriam aparecer. E foi o que aconteceu nas poucas aulas que pudemos dar lá dentro, depois de inúmeros obstáculos, procedimentos, restrições e por fim nossa saída emergencial e fim do projeto com a explosão e incêndio de ônibus pela cidade e o isolamento dos presídios.

Em 2011 eu levaria uma turma de calouros da Escola de Comunicação da UFRJ para ver de perto o que é um presídio e quem são os que estão lá. Todo brasileiro deveria ir visitar um presídio ao menos uma vez na vida. Enquanto entrávamos e as portas de ferro iam fechando uma a uma atrás de nós, com seu aspecto enferrujado e desgastado, a cada batida, a cada som pesado e lento, o mundo lá fora ia desaparecendo e sentíamos perfeitamente nas caras, nos rostos, nas conversas, nos gestos, em todo o ambiente, que se criara ali um autogoverno em que o Estado e parte da sociedade brasileira, no seu infinito desprezo e ódio, poderiam até exterminar, mas não mais controlar.

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