Os Negros de Curitiba

greca2A importância dos povos africanos na construção e na formação sócio-cultural de Curitiba; dos escravos, passando pelos irmãos Rebouças, até a fundação da Universidade do Paraná. Tudo contado com riqueza de detalhes históricos na coluna de Rafael Greca (PMN). Leia e ouça a seguir.

Os Negros de Curitiba

Rafael Greca*

Não dá para esquecer a contribuição dos negros à cultura e à formação da cidade de Curitiba. Digo isto no meu livro “Luz dos Pinhais, História e Estórias de Curitiba, de mais de 400 páginas, que será publicado em julho próximo pela editora Solar do Rosário.

Curitiba e o Paraná já tiveram um terço de sua população composta de negros e mulatos. O Censo feito em 1772, a mando de Afonso Botelho, revela uma Curitiba com 1.939 moradores. Paranaguá com 3.193. A Comarca toda, 7.627 almas.

Um terço da população – 2.543 almas – era de escravos negros e mulatos. Isto, junto com a existência de irmandades de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos, com igrejas significativas tanto em Curitiba como em Paranaguá, desmancha o mito de um Paraná só de gente branca.

Economia

O primeiro semita morador do Paraná, teria sido um certo Bassan, escriba de Gabriel de Lara,referido nas Atas de Paranaguá, da elevação do Pelourinho (1646) e do reconhecimento das lavras de ouro. Este pioneiro, possivelmente um “marrano”, ou cristão novo batizado na marra, pode ter tido sucessores em escravos negros islâmicos trazidos para cá ao longo de dois séculos.

Os negros foram, por duzentos anos, a força de trabalho que ergueu a vila e a cidade de Curitiba. Em 1721 veio aqui ditar provimentos o Ouvidor Raphael Pires Pardinho. Teria este sobrenome alguma relação com a cor da pele? Eis um desafio a ser pesquisado pelas nossas Universidades.

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Importante notar que o primeiro “retrato”, a primeira imagem que se conhece, da cidade de Curitiba é uma aquarela de Debret, datada de 1827, onde o protagonista é um homem negro trabalhador.

Naquela aquarela preciosa, da coleção Newton Carneiro – que comprei para o acervo da Prefeitura de Curitiba – para o acervo da Casa da Memória de Curitiba – que também fiz construir, podemos ver , em primeiro plano, um escravo pedreiro, com barrete frígio vermelho, lavrando pedras que podem ser tanto da Capela de São Francisco de Paula (1809) ou da igreja do Rosário (1737). Depende de como se lê a perspectiva.

Adiante o arruamento do centro histórico, com a ladeira de São Francisco, o Largo da Ordem, até o Largo da Matriz, que aparece vista de fundos, trancando a rua Fechada.Vê-se ainda o sobrado da Casa da Câmara e Cadeia, e o casario de uma Curitiba com cerca de 10.000 habitantes. Em terceiro plano, a aquarela de Debret revela os charcos e as matas ciliares dos rios formadores do Iguaçu. No horizonte, brilha em azul, a Serra do Mar, a cordilheira cedendo nas curvas das três gargantas: Graciosa, Itupava e Arraial.

O escritor Auguste de Saint-Hilaire, em 1820, comparou o número de escravos com o de súditos livres. Referiu censo de 1818: havia 1.587 escravos para uma população de 11.014 almas.

Foram mãos de negros que talharam as pedras em matacões que revestem o Caminho do Itupava, que ainda persistem em umas poucas calçadas desta técnica preservadas em Curitiba – a mais destacada no começo da rua Mateus Leme, na lateral da Igreja da Ordem, outras nas ruazinhas do Cemitério Municipal.

Foram mãos de negros que ergueram o casario e as antigas igrejas, a alvenaria de pedra, seja das Ruínas de São Francisco, seja da própria Igreja da Ordem, seja da Casa Romário Martins, isto sem falar na igreja do Rosário dos Homens Pretos de São Benedito (1737), infelizmente demolida em 1930, para dar lugar ao atual templo.

A emancipação política do Paraná, a 19 de dezembro de 1853, coincidiu com a proibição do tráfico de escravos,pela lei “Euzébio de Queiroz” (1850), o que diminuiu o contigente trabalhador. Tanto assim que Zacarias de Góes e Vasconcelos percebeu necessidade de mão de obra de homens livres para fomentar nossa parca economia. O Paraná sofria penúria, carência de víveres alimentícios, por falta de quem plantasse. Assim a Assembléia Provincial aprovou a 21 de Março de 1855, Lei nº 29 que regulamentou o patrocínio oficial da imigração europeia. Começava a se formar “ O Brasil Diferente”, mas a contribuição dos negros ainda persistiria.

Censo promovido pelo Governo Provincial do Paraná, em 1854, indicava a presença de 62.358 habitantes, sendo ainda 10.189 escravos negros ou pardos, ou seja, 16,3% do total da população. Já estava proibido o “tráfico de escravos” no Atlântico pela lei britânica “Bill Aberdeen”. Inclusive em virtude do incidente diplomático ocorrido em julho de 1850, na baía de Paranaguá, com o cruzador inglês Cormorant que ali entrara perseguindo embarcações nacionais suspeitas de tráfico negreiro, barcos de propriedade de capitalistas paranaenses, entre eles, Manoel Antônio Guimarães, mais tarde Barão, e depois Visconde de Nácar”. Registram os historiadores Cecília Westephalen e Jayme Antonio Cardoso em seu Atlas Histórico do Paraná.

O jornal “O Dezenvove de Dezembro”, o primeiro do Paraná, publicado em Curitiba a partir de 1854, é repleto de anúncios propondo captura de “negros fujões” a recompensa. Refere também as proibições do chefe de polícia de batuques e zabumbas seja nos terreiros de Curitiba, seja nos dias de festa de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito, seja em noites de Congadas.

O curioso, e que quase ninguém sabe, é que a mesma “Typographia Paranaense” que imprimia o “Dezenove de Dezembro” publicou, em 1857, o livro “Arte Musical”, de Ricardo Pereira do Nascimento, apelidado Mestre Jacarandá. Este Mestre Jacarandá era negro, baiano, estimado e conceituado na sociedade curitibana. Veio de Salvador chamado para dirigir a Banda Musical do 2º Regimento de Cavalaria. Foi professor de música do Liceu da Província do Paraná.

Na capa da obra ,rara e genial, proposta pedagógica inovadora: “por método fácil sem a maior interrupção nas ideias dos alunos,dividida em duas partes. A primeira trata da sucessão e duração dos Sons. A segunda dos ornatos e afetos que lhes pertencem”.

Inegável a alegria do povo afro na constituição da alma brasileira. Inclusive aqui em Curitiba. A história revela que, na segunda metade do século 19, o fidalgo – e mestre de música, Bento de Menezes,preparava as crianças da sua casa, filhos de seus escravos e seus sobrinhos para concertos de Natal.

Pequenos inocentes, brancos, negros e pardos, então com a candura que não fazia caso das humilhações da condição servil, tampouco das prepotências da condição senhorial, cantavam de mãos dadas, diante do presépio, na grande sala profusamente iluminada. Ali brilhava a Luz dos Pinhais!

Bento de Menezes foi também o maestro fundador da Banda da Polícia Militar do Paraná,corporação instituída a 4 de julho de 1857 por lei estadual. Colaborou para animar a cidade até então quase sempre silente, despida de harmonias. Ficou no cargo por 5 anos, quando passou a batuta para o maestro mulato Clarimundo José da Silva.

Andrade Muricy, afirmou a existência e descreveu a composição de um pioneiro Quarteto de Cordas, que alegrava a cena curitibana de então: “João Manuel da Cunha no primeiro violino, Jacinto Manuel no segundo violino, José de Brito, mestre Gegê na viola, Bento de Menezes como pianista ou violoncelista. O fenômeno Música inexistente em quase todas as localidades do jovem Brasil, perdido na distância, era concreto, positivo em Curitiba”

Este quarteto de Música de Câmara era uma ilha. de grande música na aldeia improvisada em capital do Paraná. Executavam Haydn,Mozart, Beethoven, Pleyel, Boccherini.

O que Andrade Muricy não fala é que este Mestre Gegê – José de Brito – também de sangue negro, tornou-se depois um harmonioso mestre chorão.

A saga do povo negro de Curitiba passa pela bela história da Loja Maçônica “Luz Invisível”, pioneira na luta pela alforria de escravos. Nela, segundo o Museu Maçônico Paranaense, somavam meu bisavô Comendador José Ribeiro de Macedo, o Barão do Serro Azul Ildefonso Correia, o médico Abdon Petit Carneiro, os poetas Emiliano David Pernetta e Júlio Pernetta, os historiadores Sebastião Paraná e Agostinho Ermelino de Leão, Ciro Persiano Vellozo, o padre Vicente Gaudinieri, Francisco Ribeiro de Azevedo Macedo, Joaquim Pereira de Macedo, entre outros irmãos de espírito humanitário e ideais abolicionistas e republicanos.

Este grupo financiava o resgate de escravos, em atividade transgressora na época. Sequestravam de seus donos os negros em risco. Colocavam-nos dentro de barricas de erva-mate, despachando-os, em segredo, dentro dos navios, a partir do armazém do Comendador Macedo, em Antonina, para Montevidéu e Buenos Aires. Ali, outros abolicionistas maçons os recebiam, dando-lhes dinheiro, para começar vida nova. Muito deste dinheiro era do próprio então Comendador Idelfonso Correia, do Comendador Macedo, e de outros idealistas da loja Luz Invisível.

A partir de 8 de janeiro de 1888, foi criada em Curitiba, a Confederação Abolicionista, reunindo várias entidades, da Arcádia ao Clube Curitibano, da Maçonaria ao Círculo Italiano, incluída ainda a Sociedade Protetora dos Operários. Em proclamação solene na Câmara Municipal de Curitiba, Ildefonso Correia, então presidente eleito da edilidade municipal, prefeito de fato, conclamou nossa cidade a ser terra de homens livres, instituindo uma comissão municipal em prol da libertação dos escravos. Seguia o exemplo do que já havia feito seu amigo, meu bisavô Comendador Macedo, anos antes, na Câmara Municipal de Morretes e Porto de Cima.

A atual Catedral de Curitiba também tem seu momento afro. As obras de construção da nova igreja de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais duraram 26 anos, de dezembro de 1875 a setembro de 1893. O engenheiro italiano Giovanni Lazzarini , com seu grupo de operários foi responsável pela genial solução das abóbadas da nave sustentadas por arcos botantes externos.

Este Lazarini, contou-me meu avô Manoel Valdomiro, tinha espírito libertário e progressista, achava que a casa de Deus não podia ser erguida por mãos escravas: “ Criou uma Caixa de Socorros para custear acidentados na obra. Comprou a liberdade de sete negros pedreiros, por ele alforriados. Um destes libertos também teria sido mestre de obras. Infelizmente seu nome não foi registrado”.

Curitiba deve muito aos engenheiros André e Antônio Rebouças, protegidos da Princesa Isabel, Vieram para cá implantar uma ferrovia, construída por homens livres, que ligasse Paranaguá e Antonina a Guaíra e Miranda na fronteira do Mato Grosso com o Paraguai. Acabaram fazendo apenas o trecho Curitiba-Paranaguá, as obras iniciadas em presença de Dom Pedro II em maio de 1880 e inauguradas pela princesa Isabel em dezembro de 1885.

Eram geniais estes irmãos Rebouças.

Antônio Rebouças (1839-1874) desenhou chafariz de ferro da Praça Zacarias para abastecimento de água da cidade. Inaugurado a 8 de setembro de 1871, festa da padroeira da cidade, Nossa Senhora da Luz, com a bênçãos do vigário Padre Agostinho Machado Lima. Uma coluna de ferro com quatro torneiras sob cada uma das quais um prisma de base quadrade de cantaria de granito para servir de suporte aos baldes e barris. Aí reuniam-se pela manhã os aguadeiros, que afanosamente transportavam água em barris para carroças pipas. Estas puxadas por mulas percorriam a cidade, vendendo por dois vinténs o barril de água de 20 litros. As famílias de Curitiba assim tinham água pura, magnífica, para consumo na mesa de refeições.

André Rebouças (1838-1898) foi um pioneiro do marketing brasileiro. Em 1875, em um informe para a Associação Brazileira de Acclimação, publicado pela Typographia e Litographia Carioca, então estabelecida na Corte, à rua Theóphilo Ottoni nº135, o engenheiro André Rebouças defendeu a ideia de seu irmão Antônio, em acondicionar Erva Mate com embalagens de madeira de pinho. Este livreto conservado na biblioteca de meu bisavô Comendador Macedo, talvez seja o primeiro, no Paraná, dedicado ao “marketing” e à publicidade moderna. Meu bisavô, na sua firma Macedo & Filhos,seguiu o conselho à risca. E as vendas aumentaram consideravelmente.

Há também presença negra muito determinante na fundação da Universidade do Paraná. Diz a crônica de 1912: “Para aproveitar a oportunidade,em junho daquele ano, o médico doutor Victor Ferreira do Amaral e o advogado negro doutor Pâmphilo de Assumpção reuniram lideranças da sociedade curitibana para formar uma Comissão pró-criação de uma Universidade Livre na cidade de Curitiba. Entre os presentes o doutor Nilo Cairo da Silva, bacharel em Matemática, Ciências Físicas, Engenheiro Militar e Médico Homeopata, o tenente engenheiro Daltro Filho”.

Tive a honra de conhecer, no círculo de amizade de meus pais, este doutor Pâmphilo, homem bondoso e honesto, fundador do Instituto dos Advogados do Paraná. Era chamado carinhosamente de “nêgo Pâmphilo” na alta sociedade curitibana que frequentava e abrilhantava. Li um delicioso artigo seu, datado de 1927, onde defendeu que o nome “rua das Flores” veio da trepadeira de rosas loucas que havia , em tempo remoto, no muro da casa de seus avós, na atual esquina com a doutor Muricy.

Também na casa de meus pais conheci duas outras belas mulheres negras, expressões afro de cultura e identidade curitibanas. A adorável pesquisadora e pintora “naif” dona Maria Nicolas, professora primária, historiadora autoditada dos livros “Almas das Ruas de Curitiba”. A primeira engenheira do Paraná, muito estimada por meu pai, doutora Enedina Marques que, esforçada estudante,trabalhava como normalista, lecionando crianças no contraturno da faculdade. Graduou-se em 1945.

Entre os amigos de meu pai, Eurico Dacheux de Macedo, inesquecível também a figura do advogado bonachão Edgard Antunes, o nego Tatú, presidente da tradicional Sociedade Beneficente e Protetora dos Operários do Alto de São Francisco (1883).Mestre da alegria, acompanhou-nos quando, candidato a prefeito, fui votar em mim mesmo, na eleição municipal de 1992. Minha seção eleitoral ficava no antigo Ópera-Rio.

Este Tatú era muito útil ao povo humilde de Curitiba. Prestava auxílio de pecúlio e doença aos trabalhadores. À noite mantinha aulas para qualificação de seus associados. Promovia animados bailes de gafieiara. No carnaval, os pioneiros desfiles de travestis vindos de todo país, profetas do respeito à diversidade.

Gloriosa ainda, entre nós, a história da “Sociedade Operária e Beneficente 13 de Maio”, também Alto de São Francisco. Associação de Homens Livres, fundada nos idos de 1888, após a abolição da escravatura no Brasil, resiste na rua Clotário Portugal, hoje espaço apropriado pelo movimento Afro Brasileiro.

Alguém ainda precisa estudar os negros da Vila Tassi, berço do samba em Curitiba, bairro situado à margem da estrada de ferro, no Capanema.

Em 1995, preocupado em afirmar a presença afro em Curitiba, mandei fundir em bronze, em 1995 uma réplica da “Água para o Morro”, colocando-a numa glorieta, nas Arcadas do Pelourinho, junto ao Mercado das Flores, atrás do Paço Municipal. A escultura celebra um amor intenso entre o escultor curitibano Erbo Stenzel e uma mulata que era modelo na Escola Nacional de Belas Artes.

O arquiteto Fernando Canali desenhou a graciosa fonte que fiz construir e inaugurei.

Virou referência afro. Até um cortejo anual sai da Igreja do Rosário em direção à fonte, nas comemorações de novembro, memória de Zumbi dos Palmares. Melhor assim, onde antes houve o lúgubre Pelourinho, agora termos uma alegre e romântica fonte, penhor de um amor multirracial eternizado.

*Rafael Greca, ex-prefeito de Curitiba, é engenheiro. Escreve às quartas-feiras no Blog do Esmael sobre “Inteligência Urbana”.

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